a Sobre o tempo que passa: Nesse poiso secreto que a pedra da tarde entreteceu

Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

7.9.05

Nesse poiso secreto que a pedra da tarde entreteceu



Neste cair da tarde, quando o tempo vai escorrendo sem a aridez do "stress", me sinto despoluído sem as novas da chamada civilização, aqui, bem longe das sombras da cidade. Longe do burburinho das conversas. Das longas filas da chamada organização social, onde todos nos vamos encarreirando, sempre à espera uns dos outros, sempre à espera de chegarmos mais depressa.

Aqui e agora, apenas areia sem fim e a escorreita memória de uma primavera por cumprir. E o não apetecerem outros percursos. Prefiro esta solidão sentida, estas mãos livres, estes olhos brilhantes de pureza. Que não apetecem as falsas ilusões que nos diluem.



Eu e todo o tempo que me resta, todo o tempo do mundo. Onde as mãos podem fazer o que apetece sonhar e a liberdade é escrever-me sem remorso, fingimento, as muitas cadeias que me entretecem.

Aqui posso ser quem sonho, eu, mais do que eu, no sal e no sol que me enrigecem. Aqui, sentado no resguardo de uma cabana, enquanto o sol vai viajando para seu poente. Para que novo dia me traga novo sonho, um novo tempo, quando passarem as névoas da sofrida solidão.



A felicidade sempre foi breve, antes da noite se cerrar, nesse intervalo da procura, quando sentimos firmamento. A felicidade sempre foi sulcar eternidade, nesse breve fio de um acaso que permitiu peregrinar a longa costa ocidental onde começa o mar profundo.

E nessa rude nudez que o breve sol aconchegou, nesse poiso secreto que a pedra da tarde entreteceu, sulquei as ondas proibidas da viagem e vivi intensamente os sinais do sublime.

E ficou para sempre por cumprir o espaço do eterno, aquele pedaço de um tempo chamado felicidade, esse tempo sem tempo que o fogo divino fez em brasa. Porque eu mais eu, fui mais do que eu. Que há mar em noites de luar e pios de gaivotas retomando sentido, no largo espaço da praia deserta.

E sem segredos nem barreiras, poder ir mais fundo, devassando em calma e fogo, o espaço inteiro que, além de mim, além me dá. Há cordas retesadas num mar alto que nos deu bonança, azul profundo da noite calma, todo o mar navegando com o impulso da partida.