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Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

8.9.05

Qualquer coisa que, de mais além, me prende


Imagens picadas em Maria

Sinto que há qualquer coisa que, de mais além me prende, neste processo de viver, nesta prisão de procurar. Mesmo quando me deixo perder nos meandros da leitura de um romance, a minha imaginação vai enchendo de desejos os quadros abstractos da ficção, vai dando corpo à etérea procura que marca o ritmo desta vida sem porquê, só porque é alto o desígnio que movimenta quem sou, esta dispersão aparente de quem só consegue explodir quando se deixa abrasar por um sistema mobilizador.



E há palavras que me prendem a esse qualquer coisa de muito íntimo que me faz desenrolar em viagem, quando as próprias descrições da ficção despertam as minhas vivências e me arrastam nesse abraço do impossível, onde não há cilício de racionalidade que me consiga deter o prazer de certas memórias de vida. De um mar por descobrir, de um cais de partida e de uma tarde sem fim à beira de quem somos. E nem sei se seria capaz de largar mar dentro numa viagem sem destino.



Sinto, contudo, que, nesse quebrar de amarras, há um convite para descobrir o que as sombras da noite continuam a proibir, as horas marcadas de um dever que os papéis sociais impõem. E bem apetecia que tudo pudesse ser quebrado. Que não tivesse que ficar guardado de mim mesmo, nas quatro paredes de uma casa cerrada. Que a viagem pudesse ser aqui e agora. E para sempre. Que todo o mundo se detivesse em minha espera.



Há uma estreita margem que me separa no longo mar onde meu corpo balouça, em torno do sonho que me falha. Nesta procura de quem sou, sei apenas que não sei do lugar para onde vou. Nesta procura do tempo, sempre o mistério, esse não saber o que dentro de mim vai sucedendo, quando o tempo me der o sinal que há tanto tempo procuro.

E aqui dentro, sou o tempo todo de um silêncio por cumprir, as mãos inteiras de um mar sem fim e a linha que dentro de mim me abrasa, o tempo que há-de ser.



Poderei ser a brisa de um mar que passa em rio, nas longas margens desta barra, nesta linha que assinala a praia da Europa, nesta linha que foi partida para todo o mundo e nos devolveu a esperança. Que aqui, quem sou, sou bem mais do que eu, sou as mãos que apontam o caminho, o promontório dos séculos, diante do mistério.

Diante de todo o mundo, olhando o fundo de quem sou, sofrendo a esperança, semeando quem na verdade sou. Aqui, à beira de todo o mundo, aqui, diante de um barra por onde passam todos os que vão à procura de quem na verdade são.