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Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

5.9.05

Sobre o desassossego político que nos invade



Apetece ter tempo para perder o tempo em coisas que sejam eternas. Revoltar-me contra este estado de coisas a que chegámos, onde todo o tempo que temos é uma rigorosa abolição do ócio e onde os próprios intervalos são justificados pelo negócio. Sobretudo, quando temos que comprar para darmos prendas e quando temos que descansar para justificar o fim de semana.

Vale-me que sou pago para pensar, especializado em ciências sociais naquilo a que o decretino chamou ciência política, tenho assim algum título e carimbo para tratar de assuntos gerais. Porque, sendo universitário, isto é, pária, exigem-me que socialmente cultive o ócio, isto é, o preciso contrário do nec+otium. Contudo, talvez trabalhe mais todos os dias, do que a maioria daqueles que se dedicam ao negócio. Na minha profissão não há férias nem fins de semana. Temos que passar da opinião para o conhecimento, da dispersão dos saberes para a sabedoria.



Sempre odiei o dinheiro como ideia, esse time is money que se esquece que o tempo só a Deus pertence e não aos horários dos tiquetaques suíços e também não quero ser niponicmanete digitalizado, mesmo que tudo seja made in China. O tempo deve voltar a ser de todos e o ócio a não confundir-se com a paragem do trabalhar.

O tempo pode ser a procura de quem somos, a eterna procura do que não há, mas pode ser. Que nossa dita economia de mercado, aparentando ser teologia de mercado, não passa de falsificação, resultante de um assalto devorista que, vestindo-se de legalidade, se vai esquecendo que não há liberdade sem justiça. Porque a pax mercatoria nunca pode substituir a ânsia de república universal, o desejo de um Estado de Direito universal.



As ideias nunca podem ser massificadas, para alimentarem parangonas e vaidades, dado que assim correm o risco de serem instrumentalizadas pela banalidade, pela propaganda comercial e pelo marketing. E continua a faltar-nos uma imaginação politicamente científica, como propunha Gilberto Freyre. Como sentimos o vazio, na política da camaradagem da amizade, da conspiração da reverência; da cumplicidade de uma crença; da comunidade de sonhos.

Ora, grande parte dos actuais conflitos universais resultam de erros de cálculo dos assumidos projectistas da globalização, onde os bons polícias do universo são ferreiros que têm em casa espetos de pau e péssimos arquitectos do concerto das nações. Por mim, mantenho a ambição de ser cidadão de uma potência espiritual e por isso continuo a lutar contra os fantasmas dos pequenos interesses da pequena burguesia e o pensar baixinho dos nossos bem pensantes da mediocracia.



Porque há culturas em movimento que apenas precisam de alfabetização e de educação tecnológica, desses pequenos nadas que, de um momento para o outro, nos podem dar uma manhã de nevoeiro. Daí notar os vícios que vão dessangrando a nossa alma atlântica, desde a hobbesiana teoria do homem de sucesso do individualismo pirata, onde tem razão quem vence, ao verniz burguês, cheio de lantejoulas que continua a recobrir a carcaça deste cadáver adiado que se vai reproduzindo em candidatos presidenciais, festas do Avante e guerrilheiros de café do esquerdismo lamúrias, enquanto o crime compensa e os mass media vão prestando menagem aos vencedores que se estabeleceram sobre as ruínas, através da evasão fiscal e de todo esse manancial de golpes dos colarinhos brancos e dos cavalheiros da indústria.

Há um intelectual-salsicha à portuguesa que, longe do intelectual orgânico gramsciano, é essa forma arredondada feita de subprodutos de revoluções frustradas, essa falsa cultura feita de muitas fichas roubadas à Wikipedia e aos dicionários de citações. Ele é um pescador das modas que passam de moda que estão sempre na crista da onda, mas, continuando sem uma ideia, continua a mandar e a silenciar, neste reino cadaveroso que descobre sempre os respectivos génios no centenário da sua morte.



Porque aqui e agora mandar continua a ser silenciar, excluir a diferença e estabelecer a unidimensionalidade do rebanho que fica de cócoras perante os fantasmas. E porque continua pujante um smart set possidente que tem a secular arte de manipular a mais valia, numa burguesia devorista que sempre teve a atracção fatal pelos cachorros de estimação que lhe mordem as canelas.

Quem somos não assenta naquela mixórdia com que a perspectiva da "touriste" Simone Beauvoir confundiu o salazarismo com Portugal, desconhecendo Pessoa ou as páginas de Miguel de Unamuno sobre este povo de suicidas que sempre foi constitucionalmente pessimista. E, por mim, bem queria que voltasse esta espécie de espanhol que, sendo o nosso outro, nunca é um efectivo estrangeiro quando ama o nosotros da ocidental praia.