a Sobre o tempo que passa: Fingindo que é verdade aquilo que na verdade sou

Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

15.2.07

Fingindo que é verdade aquilo que na verdade sou



Pediu-me, um órgão de comunicação social, que, publicamente, desvendasse os meus dez vícios pessoais, como se fosse possível fingir que é verdade aquilo que na verdade sou, tentando ocultar os vícios privados através de sonoras frases de virtudes públicas. Porque talvez não interesse dizer que gosto de mascar pastilha elástica, depois de ter deixado de fumar há alguns anos, ou que costumo ser uma espécie de “bicho do mato”, pouco dado a “socialite”, inclusive à do meu círculo social.

Pelo menos, não tenho que andar sempre a dizer que não sou filho do capitão Maltez, nem parente dos meus homónimos da Golegã, onde um é edil e outra era da PGR, assumindo um BI que me diz ser um desses saloios dos campos do Mondego e um dos primeiros emigrantes da família para estes círculos capitaleiros, dado ter sido um dos estudantes expulsos da universidade da terra natal em 1975, já depois de ter concluído a licenciatura no ano anterior, mas com a óbvia intenção de liquidarem a minha justa pretensão de carreira académica, coisa a que, logo a seguir, acedi por concurso público acabando por concluir um doutoramento por raiva, para parafrasear mestre Agostinho da Silva.

Aliás, já há décadas que não me confesso, pelo que, para responder ao desafio, tive de fazer uma pesquisa sobre o que é um vício, optando pela etimologia: falha ou defeito, que se opõe à virtude. Não satisfeito, dei um salto aos Dez Mandamentos, aos sete pecados capitais e fiquei ainda mais perplexo, sem que Maimónides me tivesse valido com o seu Guia. Vou assim utilizar o pretexto para o integrar no meu próprio contexto.



Número um: panteísta, adepto do pluralismo dos divinos. O meu primeiro vício está em não cumprir os três primeiros mandamentos de Moisés, dado que sou um militante daquela heresia panteísta que gostaria de voltar ao pluralismo dos divinos, acreditando que, mesmo no tocante ao transcendente, vale a pena distinguir para unir.

Número dois: antimoderno. O meu segundo vício está em não seguir as regras do método da modernidade cartesiana, rejeitando os deicídios de uma racionalidade finalística que nega o mistério e confunde o humanismo com a ilusão de podermos ser “donos e senhores da natureza”.



Número três: adepto do paradoxo. O meu terceiro vício está em usar e abusar do paradoxo, essa “forma mentis” que, conforme nos ensina Mounier, brota do ponto de união da eternidade com a historicidade, do infinito com o finito, da esperança com o desespero, do trans-racional com o racional, do indizível com a linguagem. A certeza das certezas, ou, melhor, o acto de fé central é para a razão uma antinomia, e a sua solidez está composta do impulso mútuo que se dá nos dois pólos da antinomia.

Número quatro: contra os conservadores do que está. Seguindo assim o lema de Miguel de Unamuno, considero que a essência do homem ocidental é ser do contra, o que reforça a minha posição de conservar, porque, não sendo conservador do que está, sou um acérrimo conservador do que deve ser. Apesar de viver em Lisboa e de ser pai de três naturais de São Sebastião da Pedreira, continuo um resistente camponês, com nostalgia da terra natal. Apesar de ter sido adjunto de seis governos e de ter seguido a “via crucis” da função pública, de técnico superior de segunda a assessor, com passagem por chefe de divisão, director de serviços e subdirector-geral, abdiquei da coisa quando me doutorei e corri o risco de assumir as minhas ideias liberais fora da proteccção da hierarquia vertical.



Número cinco: tradicionalista anti-reaccionário. Daí que me defina como um tradicionalista que detesta os reaccionários, e que para ser de direita, tem de assumir-se como um radical do centro. Um liberal liberdadeiro deve ser libertacionista para servir a justiça. Tal como um nacionalista que assuma a armilar tem de ser mais universalista do que soberanista.

Número seis: republicanamente monárquico. Logo gosto de dizer o que sempre fui, um monárquico adepto da coroa aberta, isto é de um trono cercado de instituições republicanas, como dizia Passos Manuel, pelo que se houvesse referendo sobre a matéria, votaria por, primeiro, restaurar a república e só depois instaurar o reino, dado que reclamo o direito de ser um republicano monárquico ou um monárquico republicano que bem gostaria que tivesse havido um miguelismo liberal que cassasse a honra com a inteligência, a emoção com a razão, contra o anterior absolutismo monárquico, para evitar o posterior despotismo de todos, esse absolutismo do povo que conduziu aos inevitáveis césares de multidões. Portanto, tive que desembarcar no Mindelo e continuo cartista e manuelino, mesmo depois dos buissidentes terem assassinado ou rei ou de Salazar ter enterrado D. Manuel II.



Número sete: um liberal anti-neolib e um conservador anti-neocon. Seguindo o paradoxo, continuo a ser considerado estadualista entre os neoliberais, heterodoxo anti-americano entre os “neocons”, autor de livros de poesia entre os doutorados em politologia, saloio entre os capitaleiros. Mesmo assim prefiro ser um homem livre que ousa viver como pensa, sem pensar como vive, nomeadamente na avença ou no subsídio que assim não recebo, porque também os não peço.

Número oito: contra a ditadura dos conceitos. Porque se a liberdade não nasce da certeza, mas da incerteza (Kierkegaard), apesar de professor de coisas políticas, não aceito que toda a realidade possa ser definida, isto é, reduzida a conceitos, porque o objecto é uma realidade que existe independentemente do sujeito, essa realidade entendida como o tal objecto de conhecimento que pode ser definida, classificada, analisada e manipulada através dos conceitos.



Número nove: um cientista anticientificista. Acresce que, como cientista, subscrevo aquele ritmo da ciência que, conforme Leo Strauss, é a tentativa de substituir a opinião sobre todas as coisas pelo conhecimento de todas as coisas, a passagem do exotérico, do socialmente útil, daquilo que é compreensível por qualquer leitor, ao esotérico, isto é, aquilo que só se revela depois de um estudo demorado e concentrado. Porque a ciência, para utilizarmos as palavras de Eric Weil, não é apenas a emissão de uma opinião qualquer a respeito da existência humana em sociedade; é uma tentativa de formular o sentido da existência, definindo o conteúdo de um género definido de experiências.

Número dez: pelo problemático contra o sistemático. Acredito mais no pensamento problemático do que no pensamento sistemático, pelo que tento pesquisar sempre o problema, isto é, toda a questão que aparentemente permite mais de uma resposta, mas que também requer, necessariamente, o entendimento preliminar, só passível de compreensão. Onde se reclama que só pode haver diálogo entre posições adversárias, quando entre elas se estabelecem pontes de consensualidade ou lugares comuns.