a Sobre o tempo que passa: Entrevista de Ana Clara

Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

17.7.07

Entrevista de Ana Clara

Para efeitos de arquivo, junto deixo entrevista de Ana Clara, hoje publicada em "O Diabo". A entrevista foi concedida por telefone e o trabalho de composição cabe à jornalista, incluindo algumas transcrições não sujeitas ao corrector ortográfico.

O DIABO — O Presidente da República avisou na semana passada «alguns agentes dos poderes públicos» para terem «cuidado com as suas atitudes» e defendeu que é preciso dar «mais qualidade à democracia». A democracia está podre?
ADELINO MALTEZ — A nossa democracia não tem culpa de tão maus serviçais que vai tendo.
Qual é o problema?
Estamos perante uma espécie de recorrência. Parece que vivemos inspirados pelo antigo Presidente da República da Checoslováquia, Václav Havel, que teorizou uma categoria de regime que qualificou como o sistema pós-totalitário, em que tinham sido eliminados os sinais exteriores de repressão — sem pessoas presas em campos de concentração, por exemplo — mas permanecia um subsistema de medo.
E esse subsistema de medo está patente na nossa democracia?
Não tenho dúvidas nenhumas. É o que está a acontecer nesta sociedade aberta e na democracia. Tivemos séculos de Inquisição. Deitámos fora a Inquisição e ficou o «bufo».
Ficou o «bufo» em que sentido?
Um «bufo» que teve vários nomes, como a PIDE, por exemplo. Há bufos à esquerda, à direita, como houve saneamentos gonçalvistas, promovidos pelos informadores e delatores, em nome daquilo a que se chamava a vigilância revolucionária e que, no fundo, não passava de uma guerra de invejas. Tivemos mais de 40 anos de autoritarismo salazarista, tivemos saneamentos gonçalvistas. Todos eles deixaram subsistemas de medo.

E esses subsistemas de medo ainda estão presentes em quê? Como se eliminam?
Está tudo vivo. A forma de se eliminar este subsistema de medo não é com os discursos do Presidente da República.

Então é como?
É com Educação.

E o que é que acontece a um subsistema destes?
Se não se educa as pessoas, permanece este lastro, que é a escravidão voluntária. A culpa não é do déspota, a culpa é dos que, tendo medo, provocaram o déspota. Quem faz os «Salazares» são os escravos que gostam de o ser. E a culpa de a nossa democracia apresentar estes sinais não é de José Sócrates, é do povo português.

Como é que se pode explicar todo este clima de intimidação e medo que existe no País contra o Governo?
O que temos em Portugal é uma espécie de «Cavaquinhos».

«Cavaquinhos»?
Sim, que agora são também os «Socratinhos», os «Correias de Camposinhos» e que são os micro autoritarismos subestatais. A principal doença desta recuperação de subsistemas de medo está na repercussão como cogumelos de pequenos déspotazinhos caseiros.

«Chefinhos mais papistas que o Papa»
E é isso que temos neste momento em Portugal?
Sim. Micro-autoritarismos subestatais onde há «chefinhos» mais papistas que o Papa.

Para onde caminhamos então em termos de sistema e de democracia?
Já tivemos isto na democracia no tempo de Costa Cabral. Ao fim de uns anos de Costa Cabral, as pessoas pararam numa guerra civil, na Maria da Fonte.

E nós caminhos para uma guerra civil?
Não… Se fosse noutra dimensão era para aí que caminhávamos.

Então para onde caminhamos?
Bastava uma admoestação nas reuniões de quinta-feira em Belém para isto ser resolvido. Mas o problema é que estamos na Presidência Portuguesa da União Europeia. Isto resolve-se da maneira mais simples do mundo. Em primeiro lugar, o partido que está no poder é o partido que menos tem a ver com este ambiente, é o mais libertadeiro dos partidos democráticos.
Mas isso é uma contradição, tendo em conta os casos em que tem sido acusado de tentar calar muitos sectores…
É e isso é que é bom. É o contrário do que pode parecer. Sócrates acha que ter autoridade é ser assim. Mas Sócrates é um gonçalvista mal reciclado que fala em nome do PS.
Está então a falar de uma imagem maquilhada…
Acho muito bem que eles tenham vindo para o lado do pluralismo e da democracia mas que se dispam desses gonçalvismos mal reciclados.
Mas temos, por exemplo, políticos, como a Secretária de Estado da Saúde a dizer que só se pode criticar o Governo em casa ou em círculos privados. Parece que vivemos num País anti-democrático…
Este tipo de declarações resume-se a governantes que são uma anedota para os cidadãos e para a comunicação social. É o contributo para uma campanha alegre.

Chegamos ao ponto de ver a Igreja Católica atacar o Governo por falta de liberdade, de diálogo e de Educação em Portugal. Como interpreta este sentimento anti-Governo que atinge transversalmente a sociedade?
As relações entre a Igreja e o Estado são reguladas pela Concordata. Se o Governo não cumpre a Concordata a Igreja deve promover uma reunião e alargá-la a todos os sectores da sociedade civil e estabelecer as denúncias respectivas. Mas se a Igreja se assume como grupo de pressão — e é o que ela está a fazer —então não há Tratado Internacional nesta matéria para quem se assume como grupo de pressão.

É perigoso a Igreja entrar por este caminho?
Qualquer artificial conflito entre a política e a religião é suicida e perigosíssimo porque seria uma espécie de guerra civil interior dentro de cada um. É melhor cada um manter-se no seu caminho, cooperando porque se fazemos uma confusão entre o povo de Deus e o povo da República é terrível. Em primeiro, há pluralidade de pertenças, mais de metade dos portugueses são ao mesmo tempo Povo de Deus e Povo da República. Ele não pode despir-se de um fato e vestir outro porque está dentro dele.

Que balanço faz da actuação do Governo nestes últimos dois anos? O País está melhor?
Numas coisas está melhor, noutras está pior. O balanço global da actuação do Governo é o balanço da sensação psicológica de liderança da comunidade. Teve dois anos de estado de graça.

Foi muito tempo…
Foi, graças a dois fôlegos. Primeiro, o fôlego eleitoral e depois um segundo, a eleição de Cavaco Silva. E agora chegou ao fim do estado de graça e entrou na lei que temos estabelecido a todos os governos e que não duram mais de dois anos. Entrou em tabu, em pântano.

«O GP do PS é uma correia de transmissão de Mariano Gago»
O Ensino Superior é um sector que atravessa uma enorme turbulência…
Neste momento temos uma lei sobre a reforma do Ensino Superior, proposta pelo Governo, através da inspiração divinal do Professor Mariano Gago e dos escritos do professor Vital Moreira, apresentada e aprovada na generalidade no Parlamento. O Ministro Mariano Gago diz que ouviu as sugestões dos reitores — que é um grupo de pressão — e eventualmente negociará com eles um sistema de meio-termo. Mas ninguém diz que isto significa que o Parlamento não existe, que o grupo parlamentar do PS é uma correia de transmissão do Sr. Ministro da Ciência e do Ensino Superior. Não há autonomia para fazer leis e a verdade é que os grupos parlamentares não passam de ventrículos do Governo. É o costume.
Mas com esta nova lei a autonomia do Ensino Superior fica em causa e a criação de Fundações está a criar alguma polémica…
Ao contrário do que pode parecer temos dois extremos: o extremo Gago e o extremo dos bonzos chamados Conselhos de Reitores. Prefiro o primeiro. É preciso ter vontade para tirar poder aos que o têm. E, neste aspecto, esta lei acaba com os grupos de pressão que mandam nas universidades e que se chamam Conselho de Reitores. Lembro que eles foram eleitos em nome de uma oligarquia de interesses, que nos está a destruir por dentro.
Essa é outra aparente contradição…
Claro, aquilo não representa a Universidade porque se os reitores o fossem verdadeiramente não tinham medo do sufrágio universal. Eles são eleitos por uma barganha de interesses corporativos instalados. Os senhores reitores não são representativos. Não são eleitos como no Brasil ou como em Espanha. Concordo com o Ministro neste domínio. Os que lá estão, os professores e investigadores, que vão dar aulas e investigar. O que é que me interessa a mim que, para gerir os dinheiros do povo, venha um gestor profissional? A universidade é um assunto sério demais para ser deixado só aos universitários. É preciso mais liberdade académica e haver projectos de investigação e que o gestor diga, com toda a clareza, se os projectos são bons ou não. Não quero uma Universidade como temos hoje com partidocratas, cheio de cavaquinhos e socratinhos.

É a velha história do País de cunhas?
É o País de cunhas e ideologicamente com processos mentais inquisitoriais. Cheguei a ter nas minhas aulas bufos, estudantes, membros do Conselho Directivo, que iam fazer o relatório ao chefe por eu criticar algo. É o tal micro-autoritarismo subestatal e subsistema de medo de que falei.

O que falta então para termos em Portugal uma verdadeira reforma do Ensino que modifique todos esses problemas?
Ao contrário do que pode parecer, espero que haja coragem, que se aplique esta lei imediatamente, que se leve até ao fim algumas medidas, que se as corrija e, depois, em vez de se chamar um desses juristas que são os «pais» do pronto-a-vestir das leis portuguesas, que se ponham as pessoas num curso rápido de pluralismo.

Isso mudaria muita coisa?
A Universidade deve ser uma espécie de confederação, os sistemas jurídicos e o pronto-a-vestir, que a maior parte do positivismo dominante tem, é suicida. Podemos ter geometrias variáveis, fundações juntamente com faculdades clássicas, ou uma confederação como na confederação helvética onde cantões ainda têm o braço no ar e outros são altamente complexos.

«É preciso acabar com a «empregomania»
E as Fundações?
Recordo que as Fundações apareceram no ordenamento jurídico português com Ferra de Correia que sabia umas coisas de Direito Internacional, com Marcelo Caetano e o próprio Salazar escreveu o diploma. O que temos aqui é falta de técnica bem feita e de chamadas de pessoas. Além disso é preciso acabar com a «empregomania».

Esta a falar dos conhecidos «tachos»…
A maior parte deste conceito está todo a ser ultrapassado por causa da empregomania. Na minha Faculdade, por exemplo, em 200 docentes, despedia 100 e faria melhor. E em vez dos 50 por cento de «netos» que lá existem, abria um concurso público para 25 por cento. O País está a deitar fora o melhor dos seus jovens. Porque não há concursos públicos reais. 90 por cento dos concursos públicos da Universidade portuguesa são todos com fotografia para resolver a endogamia. E o Estado é o patrão disto tudo. Temos uma endogamia de cunhas mal fabricadas, concursos por fotografia onde se prejudica a competência e a sociedade aberta pelo sistema do «cartão Jota» e do «cartão pré-Jota». Continuamos a enganar o povo e a tratar mal o dinheiro dele.

Há quem diga que há lóbis na sociedade portuguesa que acabam por minar as decisões do Governo e que são um travão ao desenvolvimento económico. Concorda?
Nós temos um lóbi em Portugal: que é o lóbi dos bufos! Que tanto serve à esquerda como à direita. No meu caso, cheguei a um patamar em que já não posso ser mais promovido e digo o que penso. A maior parte das outras pessoas estão sujeitas a sistemas de pressões que impedem aquilo que é a grandeza de Portugal.

E qual é a grandeza de Portugal?
Produzimos uma coisa fundamental para promover o País. Durante séculos e séculos quem se sentia mal com este sistema de repressão capitaleira e castóive, mudou e, felizmente, mudaram 100 milhões de portugueses ao longo destes últimos tempos.

E que 100 milhões de portugueses foram esses que mudaram?
Os 100 milhões que se foram embora para o exílio, que construíram novas Pátrias, livres deste controlo. O grande problema de Portugal é que temos um sistema governamental e institucional de repressores que não sabem lidar com o português à solta. É preciso recuperar o português à solta porque ele fez coisas grandiosas na emigração…

Mas porque é que há este medo em Portugal de denunciar e dizer o que se pensa?
É um sistema de medo inquisitorial. Vou dar o caso do blogue «Do Portugal Profundo». O pobre António Balbino Caldeira abriu o esgoto. Mas tem um advogado que apareceu mediaticamente a dizer asneiras. Mesmo uma causa nobre acaba por ser destruída devido às teorias da conspiração. Brinca-se com a honra das pessoas. Por exemplo, eu posso criticar o Paulo Portas mas não posso dizer o que dizem dele às escondidas porque a maior parte das pessoas que diz mal de Portas tem é inveja. Não se pode dizer o que se anda agora a dizer de José Miguel Júdice. Porque precisamos de muitos Portas e de muitos Júdices. Marx inventou como energia da História uma coisa chamada luta de classes, e esqueceu-se — como dizia Friedman — do principal motor da História nas cidades atrasadas, que é a luta de invejas. E o que temos em Portugal é uma crise psicológica profunda que é a inveja, a delação, a bufaria que impede o que faz progredir uma sociedade: avaliação pelo mérito, competição, pluralismo e que ganhe o melhor.

«Que Sócrates cumpra o referendo que prometeu ao povo»
O que espera destes seis meses da Presidência portuguesa da União Europeia?
Espero, como bom patriota, que o Eng.º Sócrates faça aquilo que prometeu internacionalmente. Consiga o Tratado Constitucional conforme o mandato, porque não é José Sócrates que está em causa, é Portugal. E cumpra o que prometeu ao povo que é um referendo.

Mas parece que essa promessa pode estar causa. Tudo depende do texto final que vier a ser aprovado…
Repito. É fundamental que Sócrates e o principal partido da oposição cumpram o que prometeram. Eu, por exemplo, fui pelo «Não» à Constituição Europeia e, como não sou teimoso, depois de ler este Tratado, até o vou aprovar.

Porquê?
Porque traz realismo. O realismo de não deixar sair britânicos, não deixar que os eurocratas mandem nisto e misturem o princípio da integração política com o princípio da cooperação política. Se isto levar a uma Europa de geometria variável, de Nação de nações, é bom. Que a Europa sirva para reforçar as Nações.

Para onde é que esta Europa caminha?
Caminha para a criatividade. A Europa não está escrita, é um espaço de invenção porque ela, como diz Jacques Délors é um OPNI (Objecto Político Não Identificado). A Europa é uma Nação de nações, é um espaço de geometrias variáveis e temos na mão um dos melhores projectos de convivência entre povos e nações que tivemos desde o tempo de Cristo. Aproveitemo-lo.

Não o temos aproveitado?
Enquanto continuarem a despovoar a agricultura e a economia, por exemplo, não estão a ser europeístas. A agricultura é uma forma de povoar o País. Nós despovoamos o País e, pior, despovoamos a capital. Temos neste momento uma capital despovoada a governar um País despovoado para gáudio dos suburbanos, que é a classe política portuguesa.

Como olha para a reforma do sistema eleitoral que prevê a redução do número de deputados e a introdução dos círculos uninominais?
É música celestial.
Há uma teoria que diz que este sistema fomenta a corrupção. Podemos tirar essa conclusão?
Podemos. É mais visível porque a corrupção já lá está, só que ninguém a vê também.

É a reforma do bloco central?
Sem dúvida.

Que consequências vão resultar desta reforma?
Nós precisamos é de uma grande reforma do sistema político. A democracia já está velhinha e, enquanto mantivermos algumas vacas sagradas no sistema, isto não funciona. Defendo o sistema misto alemão. Mas o problema não está aí.

Então onde é que está o problema?
Está numa coisa simples. Devíamos estar a discutir se devia haver ou não uma segunda Câmara. E mais: o que estamos a precisar é de mudar a capital do País para percebermos que isto já não é a cabeça de império.

Para onde?
Tenho feito essa proposta. O Parlamento passaria para o Porto, o poder judicial para Coimbra e outras coisas também podiam ser espalhadas. A cidade de Lisboa é a principal vítima de ser capital. Devíamos perceber que isto não vai lá com os discursos do costume. Temos que orientar o País como os reis povoadores fizeram, isto já não vai lá com panos quentes. E proponho a mudança da capital, como a Holanda e a Suíça mudaram. E repartir as funções. Recuperarmos as formas como criamos Portugal, com reis povoadores, capital ambulante e distribuição do Parlamento pelos sítios. As Cortes nunca foram sempre em Lisboa. As melhores cortes do País foram em Coimbra. O Porto merecia e isso não custava muito. Ter a sede do Parlamento no Porto teria uma forma simbólica notável.

Ajudava a construir o projecto colectivo mobilizador?
Ajudava a construir um Portugal menos capitaleiro. E a pior coisa para Lisboa — como se viu na campanha autárquica — é o estadão capitaleiro que está a destruir a cidade. Até temos ministros desempregados…candidatos em Lisboa, completamente apagados.

Como viu a campanha para as eleições na CML?
Lisboa é o espelho do País e o espelho da democracia.