a Sobre o tempo que passa: abril 2008

Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

28.4.08

Dos falsos arrependimentos marxistas, aos regressos a jacobinismos e a positivismos que gostavam de ter um déspota iluminado


Não vou falar de Manuela Ferreira Leite nem do assalto à esquadra de Moscavide. Vou ser chato e comprido. Porque ouvi, ontem, que o ministro da ciência e das universidades decretou que todos os cursos superiores de ciências sociais devem ser práticos, talvez para justificar a meia dúzia que abriu neste presente ano lectivo. Me recordo apenas daquele marechal brasileiro, para quem, na prática, a teoria é outra. Com toda a vénia da física das partículas, apenas invoco Fernando Pessoa, para quem "toda a teoria deve ser feita para poder ser posta em prática, e toda a prática deve obedecer a uma teoria. Só os espíritos superficiais desligam a teoria da prática, não olhando a que a teoria não é senão uma teoria da prática, e a prática não é senão a prática de uma teoria".


Acrescento uma pitadinha de Aristóteles, para quem a phronesis é a sabedoria prática. Um esforço de reflexão, uma ciência que não se limita ao conhecimento, dado que pretende melhorar a acção do homem. Tem como objectivo descrever claramente os fenómenos da acção humana, principalmente pelo exame dialéctico das opiniões dos homens sobre esses fenómenos e não apenas descobrir os princípios imutáveis da acção humana e as causas. Isto é, considera que, a partir da opinião (doxa) é possível atingir o conhecimento (episteme).


Mais recordo a lição de Leo Strauss, quando nos ensina que a procura racional do melhor regime político foi destruída por três waves of modernity. A primeira onda de choque, que teve o respectivo epicentro em Maquiavel, foi propagada pelo movimento da Razão de Estado, laicizante, católica ou protestante; a segunda veio a ser desencadeada pelo jusracionalismo e pelo iluminismo, levando à vitória da burguesia durante o século XIX; o choque da terceira onda da modernidade, com o positivismo e o historicismo, depois de Marx, Nietszche e Freud ainda estamos a vivê-lo em 2008.


Com efeito, a partir de Maquiavel, deu-se um rebaixamento dos fins, o abandono do modelo ideal, da teleologia natural, da ideia greco-latina de um kosmos natural, hierarquizado e objectivo, com a redução do problema moral e político a mero problema técnico. Com Hobbes, acabou o primado da perfeição, da virtude e do dever, passando a preponderar os direitos.


Segue-se o historicismo, o abandono do padrão de dever-ser, de uma ideia que transcende a própria história, passando a haver uma coincidência do racional e do real, do dever-ser e do ser. A partir de então, a teoria passa a estar ao serviço da prática, torna‑se inteligência do que a prática engendrou, a inteligência do actual, e deixou de ser a procura do que devia ser: … deixou de ser teoricamente prática.


O socratismo até deve achar que o Strauss é um estúpido neoliberal e fica contente com estas observações. Pena que não repare nas novas teorias do socialismo moral de Giddens, no movimento dos gracos, ou que caia na rasteira dos neomarxistas arrependidos que ocuparam o nosso socialismo na gaveta e que se ficam pelo jacobinismo e pelo naturalismo neopositivistas. Apenas lhes falta um qualquer Marquês de Pombal.


Por mim, sempre kantiano, prefiro defender a ideia republicana de forma não jacobina, como algo capaz de conciliar a liberdade, enquanto recusa da autoridade dogmática do governo, e a igualdade, isto é, como a recusa dos privilégios através da submissão a leis gerais, rejeitando, por um lado, a anarquia (a liberdade sem ordem) e, por outro, o despotismo (a ordem sem liberdade).


Uma terceira via que é dada pela cidadania, entendida como autonomia, como a submissão (ordem) à autoridade que cada um dá a si mesmo (liberdade). Uma unidade que apenas se consegue através do direito. Com efeito, o pactum unionis civilis que institui o Estado não é redutível a um contrato de negócios, dado organizar uma multidão de seres razoáveis e instaurar um ser comum que, sob uma Constituição é um fim em si mesmo. Algo que não é empírico nem histórico, situando-se apenas na ordem normativa, constituindo um princípio a priori da sociedade civil, uma simples Ideia da razão, isto é, o tal imperativo categórico da política, entendido como um comando absoluto da razão prática.


Entre a teoria e a prática, apenas podemos dizer que o Estado é teoricamente prático e praticamente teórico. Saber se "o que é verdadeiro em teoria também o é na prática",como dizia Kant,em 1793, ou se "a prática é tanto melhor quanto mais prática; a teoria é tanto melhor quanto mais teórica", como replicava Vilfredo Pareto, é tarefa ingrata.


Nunca é demais reconhecer, como assinala Jürgen Habermas que "só pode orientar verdadeiramente a acção o conhecimento que se libertou dos simples interesses e se instalou nas ideias e que justamente adoptou uma atitude teórica".


É que, como assinala Albert Camus, nestas circunstâncias, "a ciência explica o que funciona,não o que é".


E isto porque "toda a teoria", assim considerada,"é uma explicação de conjunto, ligando uma série de fenómenos entre si" e visando apenas "uma tentativa de generalização". Com efeito, como afirma Hannah Arendt, depois do nascimento da ciência moderna, com a dúvida e a desconfiança do cartesianismo,"a noção de teoria mudou de sentido. Já não designa um sistema de verdades razoavelmente reunidas, que, enquanto tais, não tinham sido feitas, mas dadas à razão e aos sentidos. Transforma‑se pelo contrário na teoria científica moderna que é uma hipótese de trabalho mudando segundo os resultados que produz e dependendo quanto à sua validade, não do que 'revela',mas da questão de saber se 'funciona'. É o "primado da razão sobre o fazer".


Entre nós, o idealismo neo‑kantiano de António Sérgio chega à conclusão que "uma teoria é comparável a uma renda de bilros toda ela tecida pela nossa mente,e para a qual a sensação deu alguns alfinetes,e nada mais do que alfinetes". Para este autor, "a origem do pensar não está fora dele,e de que o seu ponto de partida já é pensar". Considera que "o pensamento não seria estruturação de quaisquer 'dados' prévios, não teria unicamente uma função 'expressiva', mas seria algo 'construtivo' e activo; algo indecomponível em que se cria o objectivo pelo ordume das malhas das relações‑conceitos, produto do acto mental do juízo. Todo observar seria de facto um operar. O espírito(por outras palavras) seria criador já nos seus feitos mínimos, já no que chamamos dado". E isto porque "aquilo que se chama um'facto' seria sempre no âmagouma construção mental, uma estruturação do intelecto... desde o início o papel da inteligência seria essencialmente activo,tomando a iniciativa das perguntas e a iniciativa das respostas ... não haveria factos com anterioridade à ideia".


Na verdade, como assinala Raymond Aron, "poucas palavras são tantas vezes utilizadas pelos economistas, sociólogos ou politólogos como a de teoria, poucas conduzem a tantos equívocos". E isto porque a palavra tem duas significações e duas tradições.


A etimológica que confunde teoria com filosofia e a considera como o conhecimento contemplativo da ordem essencial do mundo.

A cientista, marcada pela vontade do "saber para prever e poder", que a considera como "um sistema hipotético‑dedutivo constituído por um conjunto de proposições cujos termos são rigorosamente definidos e onde as relações entre os termos (as variáveis) revestem as mais das vezes uma forma matemática".

Ora, acontece que quem trata de política sente, por vezes uma espécie de complexo de inferioridade face a outras ciências sociais, como , por exemplo, a matematizável economia pura, e trata de assumir‑se como "científico" à imagem e semelhança das ciências da natureza.

No fundo, como que está a atribuir um carácter de ciência subdesenvolvida à ciência que não é ciência dita exacta. Está a esquecer que o teórico se pode, no princípio, ser hipotético‑dedutivo, acaba, como conclusão, por pisar os terrenos da grande interrogação da teoria contemplativa.

Basta que tenha necessidade de integrar os fenómenos que não se repetem, que são os acontecimentos da história, produzidos pelos seres que não se repetem, que são os homens, no todo da existência humana.


Porque, como dizia Pascal, "o homem supera infinitamente o homem".Porque não é a história que faz o homem, mas sim o homem que faz a história. Porque o normal é haver anormais...

Aliás, Aron, acaba por concluir, quanto à teoria das relações internacionais , que, no fim do itinerário, o "conjunto" levou‑o , contrariamente ao que pensava no começo, à "determinação do sistema inter‑estadual" e æ "prudência do homem de Estado", passando pela "análise das regularidades sociológicas e das singularidades históricas", o que "constitui o equivalente crítico ou interrogativo de uma filosofia". Isto é, ele que quis começar por ser cientista de uma teoria cientista, acabou por ser cientista de uma teoria contemplativa.


E, como salienta Giovanni Sartori,"a acção do marxismo demonstrou nos últimos cinquenta anos, a falta de unidade entre teoria e praxis; mostrou que a praxis se inverte, ao contrário do que previa e desejava a teoria....

O marxismo é todo ele objectivo e não meios; todo prescrição, nada instrumentação; é exortação, não engenharia". Do mesmo modo Albert Camus que refere que a doutina que Marx queria realista "era‑o, com efeito, no tempo da religião da ciência, do evolucionismo de Darwin, da máquina a vapor e da indústria têxtil".


Concluo, como Sartori: "numa extremidade, a ciência devora a política;na outra, a política devora a ciência. Os dois extremos se tocam, e se transformam um no outro:a obrigação do cerdadeiro politólogo é impedir que isso aconteça"


Com efeito, neste domínio, como denuncia Sartori, "há filósofos disfarçados de cientistas", tal como existem charlatães em busca de misturas de literatura, filosofia, política, quem sabe,também de poesia e outros ingredientes". Não podemos, contudo, deixar de reconhecer que também há cientistas que mais não fazem do que dar uma ilusão de cientificidade a uma determinada ideologia e, muito aristotelicamente, que a poesia pode ser mais filosófica,no sentido de mais verdadeira, do que a história.




27.4.08

SIRESP, Santana, Jardim, Manela e as análises sociológicas do presidente


Não assisti em directo aos discursos oficiais do 25-A. Tanto não ouvi Gama clamar pelo regresso às ideias políticas (sic), como não me emocionei com o comentário sociológico do presidente sobre um estudo de opinião que encomendou à universidade concordatária de que é professor e que não sei se passou a ser o novo gabinete de estudos presidencial, para gáudio da conferência episcopal. Também não fui à manif do unitarismo frentista do Rossio, entre os capitães que restam e os cunhalistas manifestantes, apenas a atravessei a caminho do Tejo, espreitando os ranchos e trajes folclóricos da velha FNAT.


Tive, no entanto, cuidado em espreitar a reportagem da TVI sobre o SIRESP, onde andaram na baila Daniel Sanches, Dias Loureiro e António Costa, bem como o principal do BPN, nome aveirense que se me desconectou da memória. Li, depois, a primeira página de O Sol, onde vêm os quatro grandes advogados do regime (Sérvulo, Pena, Galvão Teles e Júdice). Finalmente, observei pausadamente a entrevista de Pedro Santana Lopes à SIC, no lançamento da respectiva candidatura a presidente do PSD. Hoje, reparei em mais uma das bocas do Alberto João, qualificando o movimento Ferreira Leite como candidatura do regime. A procissão ainda não saiu do adro.


Prefiro notar nos comemorativismos pós-revolucionários, nestes trinta anos de esquerda contra a direita, com programas de esquerda geridos por temperamentos de direita e vice-versa, onde a esquerda faz de direita e a direita diz que não é de direita, à boa maneira dos cristãos novos com medo da inquisição. Percebi que, por cá, o normal é haver destes anormais, porque os homens livres, se quiserem ser coerentes, isto é, viverem como pensam, estão condenados ao exílio interno. Os donos do poder, com a sua normal anormalidade, costumam ostracizar e demonizar os doidinhos que não se adaptam ao molde do controlo social que os vai beneficiando.


Nem reparamos que os novos contratadores do Estado, os descendentes dos defuntos devoristas, sabem que não há hipótese de os setembristas desembarcarem no Terreiro do Paço e que os patuleias estão balcanizados em futebolítica. Continua em vigor o estadão da Convenção do Gramido que nos cabralizou a todos. E os neocabralistas tanto deitam os foguetes como logo apanham as canas.


São eles que já emitem as leis que nos regem e de que eles se dispensam, no "outsourcing" do "off shore", coisas que, nos respectivos pareceres, confirmam como total e escorreitamente lícitas, embora não citem Cícero, o tal que dizia que nem tudo o que é lícito é honesto. Acontece que os nossos neodevoristas, porque têm também o monopólio da palavra que decreta qual o conteúdo do discurso dominante, até conseguem fabricar a chamada moral social dos ditos bons costumes, dos quais se assumem como homens bons.


Por mim, apenas os rejeito. E fico à espera da revolução de Setembro e da eventual patuleia democrática que os ponha no olho da rua, sem efusão de sangue. Seguindo o conselho cavaquista, não me resigno. Mas lixo-me. Desliguei a televisão quando nos reduziram ao nível do Ferreira Torres e dos apitos de Marco de Canavezes...

25.4.08

Viva o 25 de Abril! Com mísseis, missangas, cónego Melo, Xico Rodrigues, Otelo e César


Ontem não postalizei os meus sentimentos neste blogue, dado que as minhas obrigações de funcionário público me obrigaram a aturar as memórias sessentonas de um antigo director-geral que ainda pensa que vai ser ministro, perante o reverencialismo graxista de uma fileira de carreiristas à espera de promoção. Daí que não pudesse preparar as minhas comemorações do 25-A que passariam por uma reflexão sobre os falecimentos de dois protagonistas do nosso último meio século, o cónego Melo e o Francisco Martins Rodrigues, dois tipos de fibra, entre o tudo e o seu nada, que bem representam as nossas duas faces da Maria da Fonte.


Por isso é que, perante a aparição de Otelo Saraiva de Carvalho na RTP, fiquei agarrado à nossa "folle du logis" e quase encantado por aquele velhote de quem sempre me senti adversário. Porque, parafraseando uma clássica frase de Xico Martins Rodrigues, segundo a qual um bom revolucionário nunca pode ser um bom humanista, Otelo, com aquele estilo de gajo porreiro nunca poderia ser Fidel de Castro e mandar-me fuzilar se tivesse vencido o 25 de Novembro, contra Eanes e Melo Antunes. Ora, como estes também sabiam prezar a camaradagem e a amizade, foi desse sincrético, mais humanista do que revolucionário, que o nosso regime paradoxal foi felizmente delineado.


Por isso gostei ontem de ver a Ana Drago, a assumir-se como aluna do Boaventura Sousa Santos, tal como achei bem esgalhada a intervenção do Nuno Melo. Já os representantes do PCP e do PS no programa perderam quando se vestiram de aparelhísticos, ao serviço do respectivo politicamente correcto, enquanto o Marco António do PSD teve a intuição de praticar o espírito do 25 de Abril e do 25 de Novembro, especialmente quando comunicou que a respectiva faceta do menezismo mantinha o espírito PPD e se assumia contra Santana Lopes, preferindo Pedro Passos Coelho.


Infelizmente, ao ler os jornais do dia, passo os olhos pela intervenção de um operacional das espionagens caseiras e ibéricas e, como um dos conhecedores dos meandros desse falso científico, prefiro recordar como, ainda há uns anos, nessas mesmas salas, se recebia o Francisco Martins Rodrigues, com a minha presença moderadora. Daí que tenha decido comemorar hoje o 25 de Abril, no silêncio das minhas reflexões. Vou reler as memórias do meu querido amigo António César Gouveia de Oliveira (1941-1997), Os Anos Decisivos. Portugal 1962-1985. Um Testemunho, Lisboa, Editorial Presença, 1993.


Porque aí volta este país de sol a rodos, quando as sementes de inverno já iam crescendo. Aí permanece a luz deste nosso lugar comum, feito daquele penseé du midi a que se referia por Albert Camus. O tal Sul da Europa onde não entram as névoas do norte, a tal luz e sombra que nunca se deu bem com a penumbra dos calculistas.


Esta luz voltada para o Atlântico, que vai pelo Atlântico a caminho do Sul e que também se não confunde com o mediterrânico sentimento. Algo que tem o seu epicentro naquela linha que vai além do trópico e da Taprobana, nesse meridiano que os portugueses semearam nos corpos da saudade, entre a guerra e a paz.


Só que, para sermos inteiros, nesta procura, temos, de vez em quando, que peregrinar as raízes da Beira. Ir ao profundo interior dos planaltos, refrescar-nos nos castanheiros e nas cerejeiras, ir à nascente dos rios, aos glaciares antigos, subir às serras e recordar-nos dos míticos pastores que nos deram impulso.


E aí, nesses pequenos riachos da invernia, por entre as pedras, nesse mais alto que nos faz ir por dentro de quem somos. Nesses riachos que descem das oliveiras paras as águas de rios que nos dão mar. Nessas terras pontuada de pedras, com o nevoeiro lá em cima. E peregrinando tempo fora, tempo dentro, chegamos sempre à nossa serra-mãe, a essas pedras escuras de xisto castanho e oliveiras antiquíssimas, às pequenas leiras no fundo dos vales, com árvores correndo em desfilada, na contramão.


Tal como o César, também eu chamo provinciano a outras coisas, como ao falso urbanismo de província, a essa cópia feia de outros urbanos exóticos que procura desajeitadamente sair do rural, agredindo a província profunda que o cerca, mas da qual parece ter vergonha.


São tão provincianos como os novos politicamente correctos, pensados pelos que lêem semanários de fim-de-semana em vez de jornais desportivos. Provincianos são os tiques escleróticos do medo que se opõe ao contramedo, esse fundo salazarento em que assenta o facciosismo, de muitos ares de idiota pendurados num cabide de fatos elegantes, este país instalado, de castas orgânicas empedernidas que continua a querer manter-nos numa espécie de prisão.


Tenho pena que César não chegasse a emitir o necessário manifesto anti-Dantas, capaz de proclamar revolta. Tenho pena que não pudesse ter seguido até ao fim o seu próprio fim, como transparece nalguns papéis de cumplicidade que destruiu ou naquela conversa que me contou do africano que à beira de um desesperante Tejo lhe deu alento, partilhando com ele um pedaço de pão e aconselhando-o a olhar de frente a vida, para além da morte. Apenas vos convoco para que releiam Os Anos Decisivos, num rompante, notando como nele continuam desfraldadas as bandeiras vermelhas do ser do contra e as angústias quanto à procura do ser cultural português. Aí César permanece vivo, nesse lado humano assente na permanecente raiz rural, onde ainda nos comovem as descrições que faz do tempo de guerra e da morte de um filho.


Os beirões são assim: não deixam de ser o mesmo, apesar de passarem a professores, perdidos em bibliotecas ou emitindo aulas. E em César há um português que permanece, e que faz da pátria uma federação de amigos. Obrigado pelo teu exemplo. Tentarei cumprir fidelidade. Até sempre e para sempre.

23.4.08

Chegou a hora da mistura de Alves dos Reis com Salazar, onde Keynes continua a ser glosado, para que o Zé continue a pagar, neste mais do mesmo


O presidente da distrital de Lisboa do PSD, cargo já exercido por Manuela Ferreira Leite, com íntima colaboração de António Preto, veio hoje entusiasmar-se com a hipótese de candidatura de Alberto João Jardim. Este, ainda há dias proclamava: Um general só deve ir à batalha quando tem tropas. Não tenho tropas no Continente, nem ninguém me pediu sequer para avançar. Nestas coisas, não se avança por iniciativa própria. Por outras palavras, prognósticos, só quando começar mesmo a corrida, entre um populismo que se quer neo-sá-carneirista e um neo-keynesianismo neo-cavaquista, com todos olhando para o retrovisor.


O problema está na circunstância de os principais factores de poder já não serem nacionais. De os problemas económico-financeiros se resolverem apenas com medidas económico-financeiras, mas não apenas com medidas económico-financeiras. E de não bastar que Menezes gostasse de copiar Sarkosy, Santana, o Berlusconi e Sócrates, o Zapatero. Agora, Sócrates pode vir a ter a oposição de direita que não lhe convinha, dado que a outra face do Bloco Central pode inverter a imagem do Deus-Défice e apresentar-se como o bom aluno de Almunia e de Durão.


De qualquer maneira, parece que tinha razão Armindo Monteiro, na sua tese de doutoramento, quando dizia que a história de Portugal é a história do défice. E o consequente recurso a pretensos magos financeiros, ou a utilização do prestígio da velha ditadura das finanças. Até recorremos a uma bisneta do chefe do governo José Dias Ferreira, enquanto no tribunal de Contas está o homónimo e parente do ministro da fazenda do mesmo professor de direito.


A ministra das finanças de Cavaco e de Barroso, já violentamente contestada por Mira Amaral, com a imagem de dama de ferro do orçamento, foi a criadora desta criatura que vai enredando Sócrates. Por outras palavras, com Manela ou com o populismo anti-manela, o PSD ameaça vir a caçar no terreno de Sócrates, remobilizando a esperança das vítimas do PRACE, bem como dos deserdados das reformas por cumprir, de funcionários públicos a professores, dos centros de saúde às universidades, esmagados pelo "outsourcing" e pelo "off shore" dos pretensos "choques tecnológicos".


E como o povão vive entre o tudo e o seu nada, entre a queda para o autoritário e a contraqueda para o diálogo, entre a austeridade e o laxismo, pode chegar à conclusão que o nem carne, nem peixe, do situacionismo governamental, cumpriu o seu ciclo e que chegou a hora dessa mistura de Alves dos Reis com Salazar, onde Keynes continua a ser glosado, para que o Zé continue a pagar, neste mais do mesmo, onde continua a faltar um golpe de asa. Aliás, ninguém repara que o povo, hoje, através do parlamento, vai aprovar o Tratado do Mar da Palha, entre hossanas do PS e do PSD e o sim-senhor do CDS...

22.4.08

Um D. Sebastião de saias, ou de como a criadora pode voltar-se contra a criatura. Acabou o regime do "porreiro, pá"...


Parece que acaba de configurar-se o anúncio oficial da candidatura de Manuel Ferreira Leite à presidência do PSD. Por outras palavras, José Sócrates, qualquer que seja o novo líder do principal partido da oposição, já não vai dormir descansado. Daí que as propostas de certos porta-vozes da direita dos interesses, sobre nova engenharia partidária da esquerda moderna que lhe convém, comecem a soar a falsete, quase ao ritmo da proposta de Alberto João Jardim sobre a necessidade de uma nova Aliança Democrática. Aliás, ao que parece, a velha AD nunca concorreu na Madeira, mesmo quando ganhou no continente, assim se confirmando a coerência dessa voz insular, também defensora da regionalização para as ilhas, mas anti-regionalista para o continente, como o demonstrou no referendo, onde fez campanha pelo centralismo. Por outras palavras, neste normal anormal da demissão de Luís Filipe Menezes, a criatividade e o sentido de risco parecem querer regressar ao PSD.


Nas conversas televisivas públicas dos opinion makers oficiosos do Bloco Central, Marcelo disse que não era candidato, para, no dia seguinte, o ex-eterno candidato à liderança do PS, Vitorino, dizer que Marcelo seria o candidato natural. Daniel Proença de Carvalho silenciou. Dias Loureiro ainda disse qualquer coisa. O Presidente da República continuou a gerir o silêncio. José Sócrates que quis ser o Cavaco do PS, na sua versão Manuela Ferreira Leite. corre o risco de ver a criadora dar cabo da criatura. Mesmo que ganhem os santanistas, os menezistas ou Passos Coelho, acabou o regime do porreiro, pá. E quanto mais sociedade, melhor democracia, mesmo que seja com menos Estado.

21.4.08

Os guerriheiros de Cristo, os exércitos de Jardim e o PSD, entre o sultão e o carisma


O falecimento do Cónego Melo e a circunstância de Menezes já ter sido cabeça de lista por Braga obrigam-me a recordar a razão pela qual Alberto João Jardim se retira da candidatura à liderança do PSD: reconheceu não ter exércitos no Continente. Porque o Cónego Eduardo Peixoto de Melo era um dos últimos guerrilheiros de Cristo, com os pés na terra da pátria e os olhos no hossana das alturas, com cursilhos de cristandade e o Sporting de Braga como intermediários, onde Mesquita Machado se tornou no braço temporal mais parecido com Santos da Cunha, apenas importa notar que não faltou sequer a elevação à categoria nobiliárquica de comendador por parte de Mário Soares.


Quando Jardim deixou descair a boca para a verdade, apenas confirmou que os principais partidos do Bloco Central ainda não atingiram a legitimidade racional-normativa, vivendo, sobretudo, sob o predomínio da legitimidade patrimonial e sempre à espera da legitimidade carismática. Hoje apenas falamos da legitimidade do feudalismo, onde os nossos prinicipais partidos não passam de grandes federações de grupos de interesse e de grupos de pressão, como se nota em épocas de interregno, como a que vive o PSD.


Porque a legitimidade é o poder que se liberta do medo, através do consentimento, activo ou passivo, daqueles que obedecem. Para Weber, é a crença social num determinado regime, a fonte do repeito e da obediência consentida. Para Guglielmo Ferrero, é um acordo tácito e subentendido entre o Poder e os seus súbditos, sobre certos princípios e certas regras que fixam a atribuição e os limites do poder.


Assim, um governo legítimo é um poder que se libertou do medo, porque aprendeu a apoiar-se no consentimento, activo ou passivo, e a reduzir proporcionalmente o emprego da força. Logo, haveria três legitmidades: a legitimidade tradicional, a legitimidade carismática e a legitimidade racional.


Na primeira, a dominante nos nossos partidos, emergem os fiéis como é timbre do patriarcalismo, da gerontocracia, do patrimonialismo e do sultanismo. É uma legitimidade baseada na crença quotidiana na santidade das tradições vigentes desde sempre, e na legitimidade daqueles que, em virtude dessas tradições, representam a autoridade.


Difere esta legitimidade tradicional, da que é produzida pela mera acção emocional ou afectiva, marcada pelo instinto e pela emoção, onde há confiança total no valor pessoal de um homem e no seu destino, uma acção fundada na santidade, no heroísmo e na infalibilidade, marcante na legitimidade carismática.


Infelizmente, qualquer sultão de trazer por casa tende sempre a pensar que tem o dedo do Senhor na testa dele mesmo, como se o crisma estivesse assim vulgarizado. Ou todos pudessem chegar aos calcanhares do Cónego Melo, de Alberto João Jardim ou de Mário Soares.


Voltando a Weber. De um lado, temos o chefe, o profeta, o herói ou o demagogo, da legitimidade sultanal; do outro, os adeptos ou os leais, os discípulos ou seguidores, da legitimidade carismática. Dado que esta seria baseada na veneração extra-quotidiana da santidade, do poder heróico ou do carácter exemplar de uma pessoa e das ordens por esta reveladas ou criadas. Tudo depende do carisma, isto é, de uma qualidade pessoal considerada extra-quotidiana (...) e em virtude da qual se atribuem a uma pessoa poderes ou qualidades sobrenaturais, sobre-humanos ou, pelo menos, extra-quotidianos específicos ou então se a toma como enviada por Deus, como exemplar e, portanto, como líder .


19.4.08

De como não tenho óculos que permitam notar, na presente crise, a dimensão oculta da verdade


Vejo Menezes a ser entrevistado pelo Mário Crespo. Leio no Expresso que Cavaco prefere Rui Rio. Dizem que Manuela Ferreira Leite espera pelo autarca do Porto. Que José Miguel Júdice observou que Rio é mau por causa do túnel de Ceuta, preferindo Aguiar Branco, o tal que Jardim teme por ser da grande burguesia do Porto, donde, aliás, terá vindo Francisco Sá Carneiro. Prefiro acreditar no Menezes e no choque psicológico que representou a festa dos oitenta anos da sua mãe, interrompida pelo "voyeurismo" de certa comunicação social. Prefiro acreditar que o autarca de Gaia é um gajo porreiro, um homem comum, apaixonado, sempre entre o tudo e o seu nada, odiando a sociedade de corte, que ele qualifica como um bando dos mandantes do centralismo.
Infelizmente, reparo que muitos dos que se identificam com a atitude de Menezes, no repúdio dos métodos da politiqueirice, são, agora, tentados a dizer que ele demonstrou não ter jeito para a pulhítica, e que até já sabia onde se iria meter. Apenas acrescento que, nesta encruzilhada, são tantos os "ses" que a análise corre o risco de não ser capaz de ver o objecto à distância.
Porque ainda não sabemos qual a verdadeira causa da demissão de Luís Filipe. Se foi mesmo uma questão privada, ou íntima. Se foi mesmo porque sentiu direito ao nojo no p'ra mim chega. Se foi mera manobra de maquiavelismo à moda do Norte, para uma posterior vaga de fundo, ou de preparação da candidatura de Pedro, o tal que tão bem sabe encenar ou que em Menezes me parece genuíno.
E os "ses" prosseguem quanto à eventual alternativa. Se Menezes vai acabar por recandidatar-se. Se Manuela deixa mesmo de ser um D. Sebastião de saias. Se o Rui Rio vai mesmo à luta. Se o Marcelo salta para a garupa do cavalo de poder. Se Pacheco Pereira concretiza em militância o seu corajoso pensamento.
Apenas acrescento o que tenho repetido: PSD e PS são as duas faces da esquerda moderna do Bloco Central que a direita dos interesses vai manipulando, nas teias da sociedade de corte que marca o ritmo da nossa decadência, onde abundam "dossiers" sobre a vida privada dos principais protagonistas da política profissional que eventualmente podem ser reabertos pelos grandes patrões da comunicação social, onde falta um Berlusconi enxertado em populismo, com o apoio dos pós-fascistas, mas onde falta uma neta de Salazar ou um césar que case com uma Carla Bruni.
Reparo também que os melhores líderes predadores dos nossos PS e PSD emergiram sempre em tempo de vésperas. De Cavaco a rodar o carro a caminho da Figueira da Foz, ou de Sócrates a chegar depois de Ferro Rodrigues. De Barroso a espreitar depois de Nogueira, ou de Guterres a aproveitar o desastre de Sampaio. Quem sempre fica são os Zeca Mendonça, as bases e os jotas, porque os mandantes continuam a querer uma direita que convenha à esquerda, bem como uma esquerda que convenha à direita, para se confirmar o sistema de mandantes, isto é, do que parte e reparte e fica sempre com a melhor parte, quando o jogo precisava de um new deal.
Hoje é o tempo dos senhores Silvas que são do olhanense e querem jogar no boavista. Tal como a política corre o risco de ser marcada pelos discursos de Pinto da Costa e dos jogos imaginativos dos palradores que preparam a substituição do Luís Filipe Vieira, onde, afinal, se fica a saber que o acordo na avaliação dos professores resultou de uma conversa de Carvalho da Silva junto do ministro do trabalho, com o presidente a apadrinhar, à imagem e semelhança do que pode acontecer com o regulamento da Concordata, quando o reitor da Universidade Católica, nas jornadas parlamentares do CDS, reclama tratamento igual ao que o Estado dá à correia sindical do PCP.
Neste sentido, o epifenómeno Menezes é sintomático. A crise é o normal dos anormais da presente infuncionalidade dos nossos principais e pequenos partidos. A actual crise apenas revela, sem mantos diáfanos da ilusão, a verdade da decadência, onde um qualquer senhor Silva pode levar-nos a confundir D. Sebastião com uma mala cheia de dinheiro fresco.
Apenas concluo com aquela eterna observação de Hegel: é nos momentos de crepúsculo que costuma levantar voo a ave da sabedoria. Já foi nos piores momentos da "polis" ateniense que surgiram as reflexões de Sócrates, Platão e Aristóteles, tal como foi pouco antes de Alcácer-Quibir que Camões e Fernão Mendes Pinto puseram os lusíadas em peregrinação.
Aconselho a todos que mergulhem no pensamento ou que exercitem a criatividade que um empregado de uma agência de publicidade nos legou diante de um interregno psicologicamente semelhante ao dos tempos que passam. Voltem a ler os textos de Pessoa, desliguem a televisão, reparem que, na noite de quinta-feira, Lisboa sofreu a maior chuvada desde 1864, e vão até à barra do Tejo ver nesgas de sol que rompem o nevoeiro. A ave da sabedoria pode transformar-se em esperança, quando nascer um novo dia. Bom fim de semana!

17.4.08

Afinal não havia bomba!



Vi o Borges, ouvi o Menezes, notei os comentários do Ângelo, reparei na prévia intervenção do Aguiar Branco e nos posteriores comentários de Jardim, com uns intercalares de Rui Rio. Menezes diz que não está na corrida. Ângelo acrescenta que ele ainda pode ter uma vaga de fundo e voltar atrás. Eis o PSD vítima de laivos de populismo que não foram confirmados pela sondajocracia.




Julgo que Sócrates não vai dormir descansado. Nem Cavaco Silva. Com, ou sem Menezes, a próxima incógnita da oposição pode ser pior do que o terreno minado que marcava o ritmo do líder do principal partido da oposição. Pedro Passos Coelho e Aguiar Branco já prometeram. E têm que cumprir. Borges disse que não, que preferia Manuela Ferreira Leite, mas que não se importava que fosse Aguiar Branco. Rui Rio talvez não tenha espaço na agenda autárquica. Pedro Santana Lopes vai pensar. Marcelo, talvez. José Miguel Júdice já não pode ser. Pacheco Pereira está noutra. Afinal não havia bomba...

Escritos inúteis que nem eu sei se são antigos, mas que apetecem rescrever


Ontem, num grande salão de um alto dignitário do regime, fingindo que ali estava, compreendi que o problema não estava nos aparelhos e na boa gente que tem a ilusão de os servir. O problema está na circunstância de o Estado-Aparelho começar a perder comunhão com o Estado-Comunidade e de todos sofrermos com esse rebaixamento de fins e a consequente confusão de valores e inversão da hierarquia, com os pés na cabeça, a cabeça nos pés e o coração como simples máquina de batidelas e com o corpo todo deixando de ser suporte para a procura do infinito.
Para quê viver por ter de ser, para executar ordens anónimas de um colectivo anónimo ou servir um obedecer? Porque tempo de espera é tempo de esperança, é tempo de viajar pela distância, tempo de redescobrir quem sou, tempo de não temer quem sou.


Minha geração perdeu-se em crenças e descrença. E sem vozes que nos congregassem, sem termos raiva nem esperança, cobardes nos fomos perdendo nas sombras longas da invernia. Agora, os fáceis vencedores, em vingança vão crescendo, arreganhando seu desdém. E sem versos que nos despertem, eis-nos dispersos, minguando à sombra doentia das montanhas a que subimos no passado.


Minha geração perdeu-se na crença de só haver descrenças. Feitos folhas sem destino, fomos ao sabor do vento sem norte que nos desse rumo. Já não sabemos inventar mar nem madrugada nas horas mais amargas. Já não sabemos suster o peso do sonho, erguer as mãos ao sol, ou saudar o criador. Por isso, não resistimos à ventania que da rota segura nos desviou.

E há dias que passo a pensar em meu país antigo, em meu país perdido. E nas trovas vou procurando sinais de nevoeiro que nos livrem dos receios. Mas as novas desesperam. Apenas sou um português perdido no presente, sem esperanças no futuro. Que estas mãos cansadas já não sabem construir catedrais nem caravelas.


Quem traiu o sal das lágrimas de Portugal? Quem roubou o sonho ao meu povo universal? Quem fez do meu país ser aquilo que não quis? Há muitos desses dias antigos de futura saudade, quando as coisas simples da vida ainda tinham sentido e o todo acalentava cada parte. Os navios sabiam que em suas velas havia voos de pássaro. Que as cordas nos davam sonhos. Que os mastros saudavam abstractamente o peso do infinito.


Quando a esfera ainda tinha contornos de esperança. Quando havia o sonho de procurar um lugar onde, no próprio lugar da pátria. Porque o mar ainda nos unia. Porque o mar ainda era princípio de viagem para o outro lado do mar.


Importa, mais uma vez, chegar ao entusiasmo e ao amor só a pensar. Libertar-me dos braços abstractos da tenaz que me limita. Mesmo que não apeteçam poemas de poetas de génio, consagrados, porque, mais do que substantivos, precisamos de um predicado. Pode ser que voltemos a ser voz activa, capaz de convocar num só instante, todas as alegrias do passado. Poder ser que voltemos a ser linha recta que toque em Deus.



16.4.08

Seria melhor que, do país de Maquiavel, Mazzini, Gramsci e Mussolini, fizéssemos uma espécie de laboratório prospectivo


O essencial da democracia pluralista e do Estado de Direito não está em procurar saber quem manda através da obtenção de uma maioria, como as obtiveram Alberto João Jardim, Berlusconi ou Sócrates, os tais que escolhem ministros como Mário Lino, Correia de Campos ou Maria de Lurdes Rodrigues. O essencial da democracia está no estabelecimento do diálogo entre adversários, como dizia Ortega y Gasset, ou em controlarmos o poder dos que mandam, através do sistema de pesos e contrapesos, visionado por Montesquieu. Melhor ainda: o essencial da democracia está em podermos fazer um golpe de Estado sem efusão de sangue, como dizia Karl Popper. A democracia mede-se menos por resultados eleitorais e mais pela prática governativa das maiorias absolutas. A democracia vive-se e mede-se pela distância que vai da teoria à prática.


A Itália tem agora Berlusconi porque antes teve Prodi, duas faces de uma mesma moeda que deram origem às presentes escolhas do povo soberano. E o povo soberano, mais uma vez, mostrou como está farto dos políticos profissionais, do Estado dos Juízes, das mãos sujas da corrupção e dos mafiosos e das pretensas mãos limpas dos magistrados que, depois de viverem dos processos mediáticos se assumiram como imitadores de políticos mediáticos.


E a Itália não é o Zimbabué. Até está bem mais desenvolvida, económica, política, social, cultural e universitariamente do que Portugal. Tem os melhores pensadores políticos do mundo, os melhores empresários, os melhores cineastas e os mais destacados europeístas do mundo. Até lá vivem os papas e os cardeais.


Seria melhor que, do país de Maquiavel, Mazzini, Gramsci e Mussolini, fizéssemos uma espécie de laboratório prospectivo. Porque, pensando no nosso futuro, de acordo com os actuais conceitos de desenvolvimento, seria melhor concluirmos que eles estão numa estação ferroviária de nível mais próximo do fim da história do que nós, onde Maria José Morgado não é ainda o juiz Prieto e os líderes da esquerda ainda não são os nossos disisdentes do PCP que podem vir a ser ministros do PS.


Até os elogios do blogue de Pedro Santana Lopes a Berlusconi e o desejo de Paulo Portas imitar Fini são peças de mera ópera bufa. O Benfica tem Luís Filipe Vieira e a coisa mais próxima que por cá temos de Berlusconi chama-se Pinto da Costa. Ainda temos muitas estações de desenvolvimento para visitar antes que tenhamos umas eleições como as de anteontem em Itália. Até amanhã! Vou dar uma aula sobre o italiano Tomás de Aquino...

15.4.08

De como a Itália não é Portugal. Resultados das eleições parlamentares...

SILVIO BERLUSCONI
IL POPOLO DELLA LIBERTA (13.628.865, 37,388 %, 272). Os mais próximos de Pedro Santana Lopes e Paulo Portas. Inclui os pós-fascistas.
LEGA NORD (3.024.522, 8,297 % , 60)
MOVIMENTO PER L'AUTONOMIA ALL.PER IL SUD (410.487, 1,126 %, 8)
Totale Coalizione (17.063.874, 46,811 %, 340)

WALTER VELTRONI-

PARTITO DEMOCRATICO (12.092.998, 33,174 %, 211). Os mais próximos de Sócrates.
DI PIETRO ITALIA DEI VALORI (1.593.675, 4,371 %).
Totale Coalizione (13.686.673, 37,546 %, 239)


PIER FERDINANDO CASINI, UNIONE DI CENTRO (2.050.319, 5,624 %, 36). Aqueles onde, se eu fosse italiano e não-lombardo, votaria.

FAUSTO BERTINOTTI. LA SINISTRA L'ARCOBALENO (1.124.418, 3,084 %)

DANIELA GARNERO SANTANCHE - LA DESTRA - FIAMMA TRICOLORE (885.229, 2,428 % ). A extrema-direita que se diz direita.

ENRICO BOSELLI- PARTITO SOCIALISTA (355.581, 0,975 % ). Os mais próximos de Mário Soares.

MARCO FERRANDO- PARTITO COMUNISTA DEI LAVORATORI (208.394, 0,571 %). Os mais próximos de Jerónimo de Sousa.

FLAVIA D'ANGELI- SINISTRA CRITICA (167.673, 0,459 %)

Eleições para o Senado

Entre os sinais da doença autoritária e os reflexos condicionados da persiganga


Com o regresso de Berlusconi, a permanência de Jardim e o apoio alemão à reeleição de Barroso, configura-se o estilo da direita emergente, nestes primeiros anos do século XXI, também marcada pela gestão de silêncios de Cavaco, pelas conferências de imprensa de Rui Gomes da Silva e pela circunstância de eu próprio gostar mais do estilo da nova ministra da defesa nacional espanhola que do ritmo submarino de Paulo Portas ou que da marca descentralizadora deixada por Santana Lopes. Por outras palavras, se isto é a direita, eu que também não sou de esquerda, prefiro continuar a ser um radical do centro excêntrico.

Ninguém duvide que, ontem, imensos pequenos chefes do micro-autoritarismo subestatal ficaram reconfortados com as palavras abstractas de Jardim, quando este qualificou os opositores como um bando de loucos, num misto de salazarismo e de PREC, onde não faltou a palavra diabolizante de fascista, de que foi vítima a imaginação criadora de um meu antigo aluno que, na sua corajosa solidão, têm usado a resistência do lugar representativo que conquistou para uma bela subversão pelo riso. Felizmente que já não há internamentos de opositores políticos por razões psiquiátricos, apesar de, em muitas zonas do mundo, continuar o regime de muitos doentes que governam e não se olham ao espelho.





Quando o PSD tenta fazer a Sócrates o que a esquerda do PS e certos protagonistas da Igreja Católica tentaram fazer a Francisco Sá Carneiro e a Snu Abecasis, eis que Menezes, pelo silêncio, admite que um poder maioritário, abusando da esquizofrenia, qualifique um oposicionista como membro de um bando de loucos. Logo, resta pedir a Jaime Gama que faça mais um discurso de elogio do situacionismo, reconhecendo que tem razão quem vence. Ou ficarmos encantados com o Reitor da universidade concordatária que fez homilia nas jornadas parlamentares do portismo, reclamando para a Igreja Católica o tratamento que a governança faz à CGT-Intersindical, porque, apesar de sermos todos iguais, os católicos eclesiais e os comunistas sindicais devem ser mais iguais do que os outros crentes e militantes.
Resta saber se as negociações entre o sindicalista Mário Nogueira e a ministra Maria de Lurdes Lino são preliminares de uma Concordata com Jerónimo de Sousa, visando instalar a universidade concordatária no espaço do não construído aeroporto da Ota, tendo em vista o ano de 2017. Dou cada vez mais razão a Orwell...

14.4.08

Quem não come o pão amargo dos homens livres desconhece que a libertação só é possível a partir da memória do sofrimento


Relendo o meu último postal, apenas repito o que, num dos antepenúltimos, assinalei. O corporacionismo das vozes tribunícias do sindicalismo e os agentes do estadão, como era previsível, e o previ, preto no branco e em jornal, alargaram o terreno do bloco central situacionista. Daí que quase passe incólume a denúncia apresentada no Semanário. Daí que se recubram de silêncio muitas outras situações de compressão da cidadania, só porque Pilatos consegue lavar as mãos e Barrabás faz discursos. Por outras palavras, quando a inteligência se deixa de casar com a honra e o pensamento entra em conflito com o entusiasmo, a direita pode esperar que os Berlusconi surjam à frente das sondagens e a esquerda que se mal discutam os casos de Fernanda Câncio e de Jorge Coelho, porque, nas pegas de cernelha, há melhores hipóteses de não se levar uma cornada.


Apesar de estar prestes a ter que entrar numa longa resistência judiciária e de, consequentemente, ter que silenciar, sofrendo o ostracismo, devo concluir que, ontem, ao fim da tarde, na Praia do Meco, estava um cósmico pôr do sol e que continuo na beneditina pesquisa de coisas eternas, só porque tenho que explicar coisas da velha polis grega e da antiquíssima respublica romana, mergulhando nos subsolos para que as aulas que estou a dar sobre a matéria não sejam repetição de sebentas, incluindo das minhas.


Daí que tenha de agradecer aos causadores da presente crise política, cultural e moral do que resta da nossa pátria. Bem como aos agentes do estadão e aos pequenos sargentos e inquisidores do micro-autoritarismo subestatal. O clássico ostracismo, ao libertar-nos do mainstream, permite olhar os vermes de forma laboratorial, colocando-os nas lâminas do nosso microscópio, como objectos de análise, passíveis da astronómica observação à distância.


Aliás, em muitos momentos da história, quanto maior é a crise e a persiganga, melhores são os resultados da criatividade individual, nascida da revolta e desse pedaço de resistância de quem prefere a raiva ao ódio. Quem não come o pão amargo dos homens livres desconhece que a libertação só é possível a partir da memória do sofrimento, coisa que nenhum escrevinhador das vulgatas da história dos vencedores consegue minimamente vislumbrar. Por mim, quero continuar a viver como penso e a escrever aqui, ou noutro lugar, o que é o não pensar como vivo. Sou ambicioso demais para pactuar com os agentes do estadão nas barganhas do poderio, das medalhas, dos prémios, das comendas, das honrarias fúnebres e dos subsídios.


11.4.08

Continuando a ser do contra


Hoje, no jornal Público, vêm umas declarações minhas, muito incorrectas. Aqui as deixo:


Apontando que "a política é a arte do possível, da barganha e da negociação", Adelino Maltês diz que Sócrates estava condenado "a resistir na educação" porque não demitiu a ministra quando remodelou Correia de Campos. "Mas depois veio a história do telemóvel...", assinala. E virou-se uma página. "A questão aqui é uma avaliação a menos porque não vai ser levada até ao fundo. É um processo político para estancar a rua que, em termos de sondagens, teve efeitos imediatos", analisa. E, com uma boa dose de ironia, antevê que se José Sócrates quiser repetir a maioria absoluta só terá que aplicar uma receita: recrutar Joana Amaral Dias para a Educação, sustendo a ascensão do BE, e convidar José Miguel Júdice ou Maria José Nogueira Pinto para fixar o eleitorado do centro-direita.


Agradeço ao meu Primeiro-Ministro, o facto de ainda não ter chamado o Intendente Pina Manique, para o controlo das minhas veemências críticas e discursivas, no oposicionismo que tenho usado, neste blogue, relativamente à respectiva conduta política. Muito obrigado, chefe! Continuarei a usar de pouca correcção política no exercício desta cidadania.


Porque recto é o que vem de recta, e recta ninguém a faz sem régua, quando muito procura imitá-la. Daí que, na balança, o velho símbolo da justiça, se tenha usado do fiel para se saber se os dois pratos, de bi mais lanx, que deu bilancia, estavam equilibrados, tendo em vista o indicador, o fiel, que quando estava direito, se disse de mais rectum, ou jus derectum, donde veio direito, definindo-o como o que não é torto.


Há, no entanto, quem não procure a perfeição de imitar a recta e o confunda com a velha correição, do acto de corrigir e da reprimenda, donde veio o corregedor, o regedor, o reitor e director, bem como o dito corrector que, segundo o dicionário, é o que corrige, que prega moral, o censor, o título de certos administradores de província. Onde província é a romana zona de pro vincere, o sítio de conquista, onde se desembarca para ocupar e vencer, esquecendo-se que vencer é ser vencido.

10.4.08

Mas se acaso, tirana, estrela ímpia, é culpa o não ter culpa, eu culpa tenho.



Vejo, na nossa querida televisão, uma viagem pelo mundo inédito de coisas que têm mais de duzentos anos e que parecem incomodar coisas que têm mais de dois mil anos. Apenas devo concluir que assim nunca mais poderemos compreender a democracia daquelas revoluções atlânticas que tanto produziram a glorious revolution dos finais do século XVIII, como a república norte-americana, ou as sucessivas repúblicas francesas, para não falar em Cádis, de 1812, Portugal, de 182o, na antiquíssima luta pela constituição. A política, enquanto sinónimo de democracia, sempre se deu mal com as usurpações da teocracia, do império ou do despotismo económico.

Quando a episcopal figura do porta-voz daquela magnífica corrente que, desde 15 de Maio de 1891, no século XIX, se passou a conjugar com esse esforço demoliberal, critica os maçons por permanecerem numa mentalidade do século XIX, sou obrigado a protestar, porque talvez eles sejam um pouco mais antigos, correspondendo a uma mentalidade do século XVIII, geradora dessa comunhão de causas que levou o maçon Jean Monnet a dar as mãos aos agentes vaticanos, tipo Robert Schuman, Konrad Adenauer ou De Gasperi, para o lançamento de nova revolução que está na base do projecto europeu.


Com todo o nihil obstat, fiquei ontem a saber que o cardeal D. Manuel Gonçalves Cerejeira sempre foi um resistente antifascista e que só não deu o salto conspiratório contra o Estado Novo porque teve medo das represálias de um Salazar, que tinha dado à maçonaria o controlo da educação!!!! Perante tão benzido revisionismo histórico, resisto em não me submeter a tal literatura de justificação que procura o monopólio interpretativo na relação com o transcendente. Prefiro o pluralismo dos deuses, a heresia e os protestos. Penser c'est dire non!


Temo que, sorridentemente, regressemos a certo tipo de relação entre o báculo e a espada, como a que levou um tal António José da Silva a ir para a fogueira em Lisboa, no dia 18 Outubro de 1739, quando apenas tinha 34 anos. E cá o subscritor deste protesto, orgulhosamente filiado na corrente de Erasmo, Montaigne, Espinosa, Montesquieu, e Kant, apenas vos deixa algumas das sentidas palavras do autor da "Guerra do Alecrim e da Mangerona", preso pela Inquisição a 5 de Outubro de 1737:




Que delito fiz eu para que sinta
o peso desta aspérrima cadeia
nos horrores de um cárcere penoso
em cuja triste, lôbrega morada
habita a confusão e o susto mora?

Mas se acaso, tirana, estrela ímpia,
é culpa o não ter culpa, eu culpa tenho.
Mas se a culpa que tenho não é culpa,
para que me usurpais com impiedade
o crédito, a esposa e a liberdade?


Imagem e poema picados em Rua da Judiaria

Breves conselhos aos ilustres governantes que têm a espada na mão direita e o báculo na esquerda


Agradeço às venerandas figuras dos senhores intendentes do estadão esta magnífica instauração da segurança, onde funciona o vigoroso princípio do salus populi essa suprema lex, onde se venceu essa anterior guerra perpétua de cada homem contra outro homem, onde tudo, felizmente, pertence àquele que conservar a força. Viva este nosso querido estadão, construído pela arte do homem. Ele é belíssimo porque imita a arte de Deus. E com ele se venceu a irracionalidade do estado de natureza. Porque a razão é filha da necessidade e a medida do direito é a utilidade. Logo, a própria liberdade tem de ser entendida como mera ausência de obstáculos externos, dado que domina o medo da morte, o desejo de conservação e a luta pela vida.


Não há dúvida: o que move os homens é o amor próprio, a vaidade, a inveja, a vã glória de mandar, o desejo de fazer reconhecer a sua superioridade relativamente aos seu vizinho. Logo, não pode deixar também de se perspectivar o pacto social como algo que se contrai por utilidade ou por ambição, traduzindo-se numa alienação de direitos subjectivos.


No estado de natureza, porque, cada um contratava com cada outro, para renunciar ao respectivo direito ilimitado, a única garantia do contrato era o castigo que devia sancionar qualquer violador do contrato. Felizmente, os homens abandonaram o estado de natureza e surgiu o Direito e o Estado, surgiu a noção do meu e do teu. Assim , o Estado existe para a segurança dos indivíduos, dos particulares.

Temos, portanto, que entender o Estado a que chegámos como um deus mortal, um homem artificial, criado por aquela arte do homem que imita a arte pela qual Deus criou o mundo e o governa. Só assim o nosso querido Estado pode consistir numa multidão de homens unidos na ficção de uma só pessoa, que os representa a todos, transformando as forças ou potentiae (os direitos naturais dos indivíduos) na autoridade civil ou Potestas (o poder soberano). E isto porque pela arte é criado aquela grande Commonwealth ou Estado (Civitas em latim)...


Agora, a soberania é uma alma artificial, pois dá vida e movimento ao corpo inteiro; os magistrados e outros funcionários judiciais ou executivos, juntas artificiais; a recompensa e o castigo ( pelos quais, ligados ao trono da soberania, todas as juntas e membros são levados a cumprir o seu dever) são os nervos, que fazem o mesmo no corpo natural; a riqueza e a prosperidade de todos os membros individuais são a força; Salus populi ( a segurança do povo) é o seu objectivo; os conselheiros.... são a memória; a justiça e as leis, uma razão e uma vontade artificiais; a concórdia é a saúde; a sedição é a doença; e a guerra civil é a morte.


O nosso querido Estado é como o monstro bíblico marinho do Livro de Job e pode ser simbolicamente representado por um gigante, feito de uma imensidade de seres humanos, com uma cidade debaixo dos pés. O gigante tem sobre a cabeça a sentença bíblica non est potestas super terram quae comparetur ei, enquanto segura, na mão direita, uma espada, o símbolo do poder civil, e, na mão direita, um báculo, o símbolo do poder religioso.


Assim, a sociedade civil passa a ser entendida como um corpo de que o soberano é a alma. É o soberano que dá movimento ao corpo, tal como através da alma, o homem possui uma vontade.


Qualquer engenheiro de pontes sabe, de ciência certa, o que é o construtivismo mecanicista, onde se concebe um estado artificial, produto de um artifex, do homem que calcula e que constrói. Antes, apenas havia um brutal estado de natureza, perspectivado como o estado da psicologia egotista de qualquer homem. De corpos que se atraem e repelem, não por causa de Deus e do Diabo, mas pelas vontade de cada um, onde a vida dos homens é solitária, miserável, suja (nasty), animal (brutish) e breve (short).


Agora, não! Temos o conceito que é preceito, essa regra geral, descoberta pela razão, através da qual é proibido aos homens fazerem o que os pode conduzir à destruição da sua vida. Porque o que verdadeiramente move os homens é o medo da morte, o desejo de conservação, a luta pela vida. Assim, a razão tem de ser considerada filha da necessidade e a utilidade, perspectivada como medida do direito (mensura juris).


Deste modo, podemos explicar a moral, a política e a física a partir do movimento e da causalidade mecânica, consistindo numa imbricação das causas e dos efeitos, num encadeamentro de movimentos que fazem do mundo e do próprio indivíduo meros mecanismos.


Na verdade,a força é entendida como um meio para um determinado fim, sendo natural que se conceba o poder como um processo de acumulação, identificando boa sorte com honra e a má sorte com vergonha. Neste sentido, podemos definir a lei como a palavra de quem tem o direito de comandar os outros.


A própria liberdade deve entender-se em sentido mecanicista, como ausência de obstáculos exteriores. Ao mesmo tempo, tem que se considerar o direito como a liberdade de fazer uma coisa ou de a não fazer.


A comunidade política passa assim a ser entendida como simples delegação da força, algo de temporário e limitado que não muda o carácter solitário e privado dos indivíduos e que nem sequer lhes cria laços permanentes.


Basta utilizarmos os conceitos das ciências físicas, considerando a natureza humana como um corpo no domínio dos corpos, como um conjunto de forças que agem e reagem em contacto com outras forças.


Há que manter o recatado pessimismo antropológico, considerando que mesmo em regime de paz civil o que move os homens é o amor próprio, a vaidade, a inveja, a vã glória de mandar, o desejo de fazer reconhecer a sua superioridade relativamente aos seu vizinho, não pode deixar também de perspectivar que o pacto social se contrai por utilidade ou por ambição, traduzindo-se numa alienação de direitos subjectivos.

No estado de natureza, porque, cada um contrata com cada outro para renunciar ao respectivo direito ilimitado, eis que a única garantia do contrato é o castigo que deve sancionar qualquer violador do contrato

Só quando os homens abandonam o estado de natureza é que surge o Direito e o Estado, a noção do meu e do teu. Assim , o Estado existe para a segurança dos indivíduos, dos particulares.

Porque onde não há República existe uma guerra perpétua de cada homem contra o próximo: tudo pertence, portanto, àquele que obtiver e o conservar à força. Aí, o homem é lobo do homem, dado haver uma guerra de todos contra todos, bellum omnium contra omnes.

O senhor Estado tem de ser entendido como uma persona civilis como uma pessoa é aquele cujas palavras ou acções são consideradas quer como dele próprio,quer como representando as palavras e as acçöes de outro indivíduo ou de outra qualquer coisa.

Com efeito, a potestas, o poder soberano, vai substituir‑se às potentiae, aos direitos naturais dos indivíduos e o Estado assume‑se,assim, como persona civilis. É uma única pessoa cuja vontade, em virtude dos pactos contraídos reciprocamente por muitos indivíduos se deve considerar a vontade de todos estes indivíduos.


Ora sendo a vontade de todos reduzida a uma só ela pode ser considerada como pessoa única distinguível e reconhecível com um único nome por todos os indivíduos.

É que se para alguns todo o soberano está para o Estado como a cabeça está para o resto do corpo, agora, a soberania é muito mais do que isso, é a alma: através da alma o homem possui uma vontade.

9.4.08

Morreu o corporativismo, viva o corporacionismo!



Eis um bom exemplo do que não deveria escrever, conforme a teoria que tentei revelar no anterior postal. Com efeito, recebi alguns "mails" de leitores costumeiros que estranham a minha não referência ao caso da pantouflage que tem sido referenciado pelo anúncio da nomeação de certo ex-ministro para um alto cargo numa grande empresa. Daí que repita o que, antes da moda, escrevi e publiquei sobre a matéria, aqui, ali e acolá, mais adiante ou mais atrás. Porque, no estudo dos grupos de interesse e dos grupos de pressão, coloca-se neste momento o problema da regulamentação da actividade dos lobbies, tanto no plano intra-estadual, como no domínio das relações internacionais, no âmbito da chamada sociedade civil internacional.


Vive-se, com efeito, o abandono do anterior general good sense, com a introdução de formalized rules, nomeadamente com a criação de um sistema de registo de interesses dos parlamentares e com o estabelecimento de regimes de incompatibilidades. No mesmo sentido, estudam-se formas de controlo da pantouflage, nomeadamente com o estabelecimento de regras sobre o emprego dos membros do governo, depois dos mesmos abandonarem as funções. Sobretudo, num país, onde o importante não é ser ministro, mas tê-lo sido.


Na verdade...





... por dentro das coisas (interrupção kafkianamente involuntária provocada pelo fantasma do intendente Pina Manique).


Há, aliás, uma tendência para englobar os grupos de pressão no conceito mais vasto de grupos de interesse, começando a ser raros os trabalhos que utilizem como elemento central a expressão grupos de pressão, apesar de a politologia francesa persistir nesta terminologia. A partir dos trabalhos de Piker e Stritch [1974], Schmitter [1975 e 1979], Wilensky [1976], Wiarda [1977], Panitch [1980], Cawson [1982 e 1986], Katzenstein [1984], Grant [1985], Keeler [1987], Lehmbruch [1987], Scholter [1987], Magagna [1988], Colas [1988], e Crepz [1992], começou a delinear-se a teorização do neocorporatism, isto é, de um especial processo sócio-político distinto do pluralismo, em que os grupos de interesse voltam a ser uma espécie de corpos intermediários entre a sociedade e o Estado, constituindo organizações quase monolíticas, em número limitado.


Trata-se de uma teorização, iniciada a partir dos Estados Unidos, que visa responder à crise da representação política, do sindicalismo e da própria cidadania activa. Contrariamente ao pluralismo, no qual as organizações são rivais, no corporatism seria o centro do aparelho de poder estadual a decretar quais são as associações representativas, independentemente da autenticidade associativa das mesmas. No fundo, o corporatism é uma degenerescência do pluralismo e constitui um fenómeno pós-capitalista em que existe uma economia privada, mas não uma economia de mercado.

Porque, um grupo de pressão é um grupo de interesse que exerce uma pressão, que passa do mero estádio da articulação e da agregação de interesses e trata de influenciar e pressionar o decisor político, saindo do âmbito do mero sistema social e passando a actuar no interior do sistema político.


Na verdade...





... por dentro das coisas (interrupção kafkianamente involuntária provocada pelo fantasma do intendente Pina Manique).

A pressão pode ser aberta ou oculta, pode actuar directamente sobre o decisor ou, indirectamente, sobre a opinião pública. Entre as pressões abertas, destaca-se a acção de informação, a de consultadoria, bem como a própria ameaça. As duas principais formas de pressão oculta, isto é, não publicitada, são as relações privadas e a corrupção. As relações privadas passam pelo clientelismo, pelo nepotismo e pela pantouflage.

A corrupção, como processo de compra de poder, tanto pode ser individual como colectiva, nomeadamente pelo financiamento dos partidos. Entre as acções dos grupos de pressão sobre a opinião pública, temos tanto o constrangimento como a persuasão. Na primeira, temos a greve, as manifestações, os boicotes ou os cortes de vias de comunicação. A persuasão tem sobretudo a ver com a propaganda e a informação.

Reparo apenas que seria bem útil um estudo global sobre o fenómeno em Portugal nos últimos trinta anos. Bastava elencar todos os membros do governo numa folha de "excel", colocando duas colunas para os anteriores empregos e outras duas para os empregos posteriores ao exercício de funções públicas. Poderíamos acrescentar outras altas funções políticas nacionais, autárquicas e regionais. Ou uma simples tese de doutoramento sobre as empresas de consultadoria anexas ao processo. Apenas concluiríamos que, na prática lusitana, com alguns anos de atraso e muitas traduções em calão, a teoria não pode ser outra





Para quem quer estudar a matéria de grupos de interesse, alguma literatura do outro século:

Berry, Jeffrey M., The Interest Group Society, Boston, Little, Brown & Co., 1984 [reed., Glenview, Scott, Foresman & Co., 1989].

Cigler, Allan J., Loomis, Burdett A., eds., Interest Groups Politics, Washington D. C., CQ Press, 1991.

LaPalombara, Joseph, Interest Groups in Italian Politics, Princeton, Princeton University Press, 1964.

Moe, Terry M., The Organization of Interests. Incentives and the Internal Dynamics of Political Interest Groups, Chicago, The University of Chicago Press, 1980.

Mundo, Philip A., Interest Groups. Cases and Characteristics, Chicago, Nelson A. Hall Co., 1992.

Olson, Mancur, The Logic of Collective Action. Public Goods and the Theory of Groups, Cambridge, Massachussetts, Harvard University Press, 1965 [trad. fr. Logique de l’Action Collective, Paris, Presses Universitaires de France, 1978].

Petracca, Mark P., The Politics of Interests. Interest Groups Transformed, Boulder, Westview Press, 1992.

Wooton, Graham, Interest Groups, Englewood Cliffs, Prentice-Hall, 1970.



Para grupos de pressão:

Basso, Jacques, Les Groupes de Pression, Paris, Presses Universitaires de France, 1983.
Bentley, Arthur Fisher, The Process of Government. A Study of Social Pressures, Chicago, 1908 [reed., Cambridge, Massachussetts, The Belknap Press, 1967].
Castles, Francis G., Pressure Groups and Political Culture, Londres, Routledge & Kegan Paul, 1967.

Celis, Jacqueline, Los Grupos de Pressión en las Democracias Contemporaneas, Madrid, Editorial Tecnos, 1963.

Eckstein, Harry, Pressure Group Politics, Londres, Allen & Unwin, 1960.

Fisichella, Domenico, ed., Partiti e Gruppi di Pressione, Bolonha, Edizioni Il Mulino, 1972.

Key Jr., Vladimir O., Politics, Parties and Pressoure Groups, Nova York, Thomas Y. Crowell, 1942 [trad. cast. Política, Partidos y Grupos de Presión, Madrid, Instituto de Estudios Políticos, 1962].

Mckeean, D. D., Party and Pressure Politics, Boston, Houghton Mifflin, 1949.

Meynaud, Jean, Os Grupos de Pressão [ed. orig. 1960], trad. port., Mem Martins, Publicações Europa-América, 1966.
Idem, Les Groupes de Préssion Internationaux, Paris, Presses Universitaires de France, 1961.

Idem, Nouvelles Études sur les Groupes de Pression en France, Paris, Librairie Armand Colin, 1962.

Idem, com Sidjanski, Dusan, Verso l’Europa Unita. Strutture e Compiti dei Gruppi di Promozione, Milão, Ferro Edizioni, 1968.
Idem, Les Groupes de Pression dans la Communauté Européenne, Montréal, Université de Montréal, 1969 [reed., Bruxelas, Université Libre de Bruxelles, 1971].

Millard, Frances, Ball, Alan R., Pressure Politics in Industrial Societies, Atlantic Highlands, Humanities Press International, 1987.

Odegard, Peter H., Pressure Politics. The Story of the Anti-Saloon League, Nova York, Columbia University Press, 1929.
Richardson, Jeremy John, Governing Under Pressure. The Policy Process in a Post-Parliamentary Democracy, Oxford, Martin Robertson, 1979.

Idem, Pressure Groups, Oxford, Oxford University Press, 1993.

PS: Pedimos desculpa pelas secções de auto-censura que afectaram hoje o meu blogue. Julgo que elas se prolongarão por muito mais tempo, atendendo ao que me informou o centro de previsões pulhitológicas do micro-autoritarismo.


8.4.08

Um homem revoltado é um homem que diz não. Mas se ele recusa, ele não renuncia: é, assim, um homem que diz sim, desde o seu primeiro movimento


As centenas de leitores que diariamente percorrem estas linhas e que se habituarem ao meu estilo, compreendendo-me em comunhão de causas, devem notar que, há quase trinta e três anos, tenho o mesmo e único patrão (o povo que me paga, através do Estado, e dos variados capatazes que assumem o estadão). Dono de um "cursus honorum" publicamente concursado, onde nunca me escondi numa só linha de ocultação profissional e cívica, até fui, entre os vinte e pouco e os trinta anitos, adjunto político de meia dúzia de governos deste país e, antes da queda do muro de Berlim, e por breves dois anitos, dirigente cimeiro de um dos partidos do nosso arquito constitucional, de que, aliás, me tornei dissidente, sujando as mãos em sucessivos oposicionismos e nalgumas malogradas fundações de partidos e movimentos cívicos do contra. Ainda no século XX, nos primeiros dias da década de noventa, larguei a função pública clássica, no alto da função de assessor, para me dedicar, sem acumulação, à universidade, onde também entrei por concurso público e onde, de concurso em concurso, cheguei, antes da viragem do milénio, ao topo da carreira. Aliás, sublinhe-se, enquanto adjunto de governos, nunca fui militante, ou filiado, de nenhum partido. E só voltei a filiações depois de ter feito toda aquela parte de uma carreira que implica promoções, para evitar confusões.


Tentando cumprir o lema de procurar viver como penso, sem pensar muito como vou vivendo, apenas gostava de cumprir o que penso ser a minha vocação e, mais do que isso, a minha missão, tentando casar a bela raiva da honra com um pedacinho de inteligência, dando entusiasmo ao pensamento, isto é, procurando ser um homem livre numa universidade livre e procurando continuar livre, mesmo que a estrutura esteja condenada a deixar de o ser. E não é por acaso que, desde Maio de 2003, isto é, há quase cinco anos, que, quase quotidianamente, utilizo a blogosfera como uma espécie de extensão universitária, ou serviço à comunidade, através de uma militância cívica e necessariamente crítica, onde a solidão da cidadania tem enfrentado a nudeza dos sucessivos donos do poder, num combate de ideias que me tem gerado sucessivos incómodos, algumas persigangas e até inevitáveis encruzilhadas de saneamento, em circunstâncias que, na maior parte dos casos, não tenho publicitado, nem sequer para o círculo íntimo e familiar que me sustenta. Daí um abraço de total solidariedade ao meu querido filho, Francisco, que hoje teve notícia da primeira grande injustiça sistémica de que foi vítima. Para que resistas na procura de um lugar onde possas viver como pensas e que me desculpes pelo exemplo de vida com que te procurei educar!

Quero apenas confessar aos meus fiéis leitores que não desistirei de viver como penso e que continuarei estas reportagens íntimas que, quotidianamente, sublimo, neste, ou noutro, blogue. Este programa de vida cívica e pessoal, este meu sagrado, obriga-me a correr riscos de cidadania a que não renunciarei e que me vão obrigar a lutar até à última fibra vivente e que nunca passará pela cedência à cobardia dos que torcem para não quebrarem. Hoje, usando o elíptico, apenas me apetece concluir com os ensinamentos de meu mestre Camus, com a sua passion du relatif. Porque a revolta é uma das únicas posições filosoficamente coerentes, até porque a função do intelectual é esclarecer as definições para que se desintoxiquem os espíritos, contra todos os fanatismos, incluindo os da contra-corrente. Porque um homem revoltado é um homem que diz não. Mas se ele recusa, ele não renuncia: é, assim, um homem que diz sim, desde o seu primeiro movimento.