a Sobre o tempo que passa: novembro 2008

Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

30.11.08

Em 1 de Dezembro, contra o suicídio lento que nem sequer tem a nobreza de um harakiri nem profundidade de um “morrer sim mas devagar”


Acordo, releio Camões, volto a ter força para resistir às notícias reinóis onde, segundo "mail" amigo, continua o suicídio lento, que nem sequer tem a nobreza de um harakiri nem profundidade de um “morrer sim mas devagar”. Só daqui, compreendo mesmo Camões (ed. cit., p. 57):  

Nada dá quem nam dá honra, no que dá. 
Nada tem, que agradecer, quem, no que recebe, a nam recebe, porque bem comprado vai, o que com ella se compra. 
Nada se dá de graça, o que se pede muito. 
Está certo, quem quem nam tem hua vida, tem muitas. 
Onde a razão se governa pela vontade, há muito que praguejar, & pouco que louvar. 
Nenhua cousa homezia os homes tanto consigo, como males, de que senão guardarão, podendo. 
Nem ha alma sem corpo, que tantos corpos faça sem almas, como este Purgatorio, a que chamais honra, donde muitas vezes os homes cuidão, que a ganhão, ahi a perdem. 
Onde ha inveja, nam ha amizade, nem a póde haver em desigual conversação. 
Bem mereceo o engano, quem crê mais o que lhe dizem, que o que vê. 
Agora, ou se há de viver no mundo sem verdade, ou com verdade sem mundo...

1º de Dezembro, Oekusse, Lifao, ontem, "despois que dessa terra parti, como que o fazia para o outro mundo..."


Estive ontem aqui, Lifao, Oe-Cusse, também dito Ambeno, o mais longe e o mais só dos sítios que foram do fim de Portugal. Levei, no meu bornal, um livro de rimas e cartas de Camões, Paris, Pedro Gendron, III volume, assim portátil, e em edição de 1759. Fui ao monumento de Lifao, onde os portugueses contemporâneos de Camões terão desembarcado na ilha, pela primeira vez. O autor de "Os Lusíadas", o amigo dos Jaus, estava processado e não terá seguido viagem. Eu fui, mas por terra, três dias, quatro paragens de longas horas em fronteiras, sempre em duplicado, ora em timorense, ora em indonésio (Batugadé, Oesili, Wili, Batugadé), mas valeu a pena. E li: despois que dessa terra parti, como quem o fazia para o outro mundo, mandei enforcar a quantas esperanças dèra de comer atá então, com pregão publico, por falsificadoras de moeda. E desenganei esses pensamentos, que por casa trazia, porque em mim nam ficasse pedra sobre pedra. E assi posto em estado, que me nam via, se nam por entre lusco &  fusco, as derradeiras palavras, que na Nao disse, forão as de Scipião Africano, "Ingrata patria, non possidebis ossa mea" (pp. 45.46).


Aliás, amanhã é o Primeiro de Dezembro. Aqui deixo o meu depoimento, a publicar em Lisboa, em O Diabo:  O Primeiro de Dezembro é sério demais para poder ser utilizado como pretexto de análise de um governo que tem figuras de estadão como estas e que não divulgo, para não poder cumprir o dito segundo o qual em política o que  aparece é que é. 

Como dizia mestre Alexandre Herculano, Portugal só é independente quando tem a vontade de ser independente, mesmo que, na prática, o sermos independentes signifique gerirmos dependências e navegarmos nas interdependências. 1640 não foi feito contra a Espanha nem sequer foi feito num só dia, mas preparado com um investimento de décadas e décadas. E, como dizia outro dos meus mestres Agostinho da Silva, a principal consequência de 1640 chamou-se Brasil. 

Aliás, o plano vinha de longe e não é por acaso que um D. Luís da Cunha, pouco tempo depois da restauração, advogava a mudança da capital para o Rio de Janeiro, dando como exemplo um seu avô, implicado no partido de D. António Prior do Crato, com quem entrou em desavença porque este quando foi obrigado a abandonar o  reino, optou por refugiar-se na Europa e não no Brasil. 

Repetindo Herculano e Agostinho, digo que Portugal corre o risco de perder a independência se os portugueses perderem a vontade que os levou a refundar Portugal várias vezes, nomeadamente nos últimos trinta anos, quando muitos disseram Europa como em 1640 dissemos viva D. João IV. 

Pouco me interessa este governo, porque sei que nele há ministros tão patriotas como os melhores patriotas, bem como outros tão alheios à emoção nacional quanto muitos outros que também tivemos em todos os regimes. Por estes meses, estou na República do Sol Nascente, como  professor na Universidade Nacional de Lorosae, enquanto agente de  cooperação da universidade pública portuguesa e sinto que a comemoração do Primeiro de Dezembro deveria ser o reconhecermos que, graças a ele, esta língua de Camões, de Cecília Meireles e de Rui Cinatti é a língua mais falada no Hemisfério Sul, deste lado de baixo do Equador. 

Infelizmente, os instrumentos que dispomos para a defender são parcos demais e aqui, não tanto pelas culpas dos governos portugueses, quanto por não conseguirmos fazer da CPLP uma comunhão entre as coisas que se amam. 

Por isso, vou comemorar o 1º de Dezembro, sonhando que, dentro de anos, esta semente de república universal falada em português, em tétum, ou nos muitos crioulos seus heterónimos, pode assumir em termos de poder político internacional o necessário abraço armilar. 

Pode ser que um dos próximos papas seja angolano ou que o Brasil, além do G20, se torne membro  permanente do Conselho de Segurança da ONU. O que falta ao Portugal do quintal europeu é que os portugueses à solta não tenham que continuar a procurar Portugal fora de Portugal, por causa dos "ministros do reino por vontade estranha" que chamam doido ao Manuelinho. 

Como sou do partido de Mateus Álvares, de São Julião da Ericeira, continuo à procura da República Maior, como o jurista da restauração João Pinto Ribeiro, chamou à nossa comunidade política.

26.11.08

Os fumos do artigo já foram afastados pela chuva, e pela brisa de um novo dia que nasceu, com as acácias verdes e vermelhas


A contabilidade dos dias, na dimensão visível da sua aparência, começa a diluir-se na rotina. Xanana Gusmão está em Lisboa. Cravinho vai em breve aterrar em Timor. A embaixada está em pleno. A CPLP em funcionamento. As missões estão todas  cumpridas e já quase todos os cumpridores do regulamento que vem na Gorda podem pedir a reforma, a aposentação, a posta, o refrigério do subsídio vitalício. Os fumos do artigo de Pedro Rosa Mendes já foram afastados pela chuva, e pela brisa de um novo dia que nasceu e as acácias continuam verdes e vermelhas, como dizia o Alberto Osório de Castro. Os tipos que escrevem com tal intensidade têm de amar esta terra e esta gente e o respectivo alerta, limpo dos preconceitos e dos fantasmas, pode ter servido para unir os irmãos desavindos da partidocracia, e para que o presidente não ande por aí a mostrar a fralda da camisa, para gáudio dos sofás da intriga, no antigo hotel Makota.

A tutela neocolonial da chamada tecnocracia multicultural, as muitas e desvairadas gentes de todas as sete partidas que, vindas de inúmeros Estados falhados, se assumem como super-especialistas no "state building", são coisas que muitos apenas julgam só porque nunca as puderam chegar  a experimentar. Esta nebulosa apátrida de certo funcionalismo supra-estatal, que vai lançando seus acampamentos em todos os sítios ditos da desgraça, pode, desenraizadamente, ajudar a destruir as energias libertadoras da política. Há resmas de teorias de justificação para o estado a que chegámos, resmas e redes de amiguismos que desempenharam funções no BPN, que meteram cunhas para patrocínios do BPN e em todos os outros BPNs, com outro nome e outros partidos matriciais, filhos dos mesmo bloco, mas que são iguais em amiguismos e em cunhas, porque, nas pátrias dos poderios sem autoridade, por onde nos arrastamos, quem não aparece não existe. 

A democracia não é uma qualquer engenharia social que seja abstractamente cega. Eu, pelo menos, não consigo admitir que ex-políticos, adeptos e praticantes dos planeamentismos centralistas, possam ser recrutados agora para a construção de capitalismos a retalho, com retórica de desenvolvimento sustentável, apenas porque assentam, como chefes de contínuos, numa legião de recrutados estagiários, saidíssimos das faculdades do fabrico em série, ou das avaliações de sargentos, das tais que nos põem em fila indiana no dia da inspecção, à procura do funcionário a promover por mérito excepcional, medida pela ficha da classificação de serviço. Há, por estas e muitas outras bandas, alguns imensos e pretensos gurus que não são peritos de qualquer coisa, em qualquer lugar com tempo, mas que sabem exercitar a arte do relatório cinzento, desses "papers" que transformam as crises políticas, económicas e sociais numa espécie de modo de vida de alguns desempregados estruturais, com os seus "caterings", os seus "briefings", os seus "compounds" ambulantes, coisas exógenas e exóticas, com que se vai poluindo a paisagem das coisas humanas e sociais.

Nesse jardim zoológico que vai invocando a superioridade quase celestial da metapolítica, não sei se vamos gastando dinheirinhos que bem poderiam servir para dar segurança, matar a fome e lutar contra a doença de todos. Uma organização ou uma cooperação internacionais, quando se tornam infuncionais, podem transfigurar-se em entidades feitas de poder pelo poder, mas já perderam o sentido dos gestos.

25.11.08

A passarada começa a chilrear depois da tempestade. Os galos despertam todos os quintais. As rolas, aqui e além, compõem a harmonia...


Acordo, depois de muito trabalho e de poucas horas de sono, depois de meditada reflexão sobre exercícios de avaliação de alunos de uma bela licenciatura em direito, lançada pela cooperação da universidade portuguesa, com o esforço de muita gente, representada pelo Professor Doutor Pedro Bacelar de Vasconcelos. Fico feliz com os resultados do diálogo de culturas e de civilizações, com o comparativismo, com a análise complexa das situações de violência estrutural da colonização, da ocupação militar, do violento despertar da institucionalização dos conflitos pela via partidária, do lançamento do Estado de Direito... A esperança pode vir dos próprios desesperados. 

Converso nas arcadas da universidade com variados alunos, desde deputados da situação e da oposição, desde antigos candidatos a presidentes com actuais reitores e membros dos gabinestes ministerais, desde altos graduados das forças armadas a simples bombeiros, gente de todas as condições, de todas as línguas, de todas as formações, uns vindos de Lisboa, outros da Indonésia, outros da Austrália. Vale mais exeprimentá-lo do que julgá-lo, mas julguem-no todos os inspectores da cooperação e dos manuais de procedimentos que podem achar interessante umas férias no Hotel Timor, com saltos a Bali e às praias de Comoro. Hoje, em pleno desabar de uma forte chuvada tropical, viveu-se a inauguração da Casa da Europa, com o comissário Michel, bem como de alguns melhoramentos no hospital Guido Valadares. Barroso, aqui, deu, de certeza, o seu apoio.


Nisto, não elaboro teorias, pratico e tento cumprir uma ideia que eu penso ser a de Portugal universal e pós-imperial, que é a que passa pelo abraço armilar da CPLP, aqui registado por Cinatti, Reis Thomaz, José Mattoso ou Rui Palma Carlos. Num ensinar e num aprender como em qualquer universidade do mundo, como as melhores onde já tenho feito exactamente o mesmo, da Clássica de Lisboa à Técnica também de Lisboa, da UNB de Brasília, à francesa de Estrasburgo. Leio e releio, o tal artigo-manifesto, tão bem construído por Pedro Rosa Mendes, assente numa opinião fundamentada, numa concepção coerente do mundo e da vida, escrito num tom de revolta que apenas expressa a angústia de alguém que ama esta ilha. É uma pedrada que pode despertar homens de boa vontade. Leio, infelizmente,  imediatas reacções de puritanos analistas que vivem entre o tudo e o seu nada. Até sou capaz de prever que, dentro de dias, aí na metrópole, com reflexos condicionados neo-imperiais, haverá quem proponha o regresso do "white man's burden", super-demoliberal, à bela maneira da SDN, quando Kipling, o autor da frase, andava com os mesmos símbolos de Ramos Horta na camisa. 

Apenas conselho que passemos a uma fase superior de análise do problema timorense: vamos, como me escrevia um aluno que vou citar, ao âmago das coisas, vamos a uma abstracção mais elevada, mas que, ao mesmo tempo, sente os pés firmes na terra, na medida em que relacioan sempre o teórico com a prática concreta, ainda mais com a realidade que atravessamos e melhor ainda quando se dirige à conjuntura actual do nosso país. Até há por aí ex-maoístas como a Ana Gomes ou o Zé Manel Durão Barroso que bem precisam de dar uma ensabadoela de amor a Timor nalguns ocidentalizados mais à pressa da redacção de "O Grito do Povo". E há também uns padres e umas freirinhas aqui da ilha que têm de ir a Fátima para uma vela à divindade, para que fora da causa de Timor não fique um único Deus marginalizado...

Para descanso de alguns editorialistas do ex-maoísmo, e agora fundamentalistas neoliberais, neo-utilitaristas e neoconservadores, os mesmos que, com esse gnosticismo vérmico, apoiaram Bush e a invasão do Iraque, seria melhor que não repetissem tretas que já ouvi, sobre esta metade de uma ilha, vindas de fascistas folclóricos, cobardes e pica-subsídios, que apelavam ao desembarque de cortadores de cabeças, sem perceberem nada das almas de antepassados ou dos crocodilos que são avôs. Porque quase todos repetem o que disse Junot e o Maneta sobre os reaccionários e sebastianistas lusitanos dos começos do século XIX, ou os devoristas discursos parlamentares de Costa Cabral, a nossa tradução de Guizot em calão, sobre o povão da Patuleia e da Maria da Fonte, antes de Saldanha pedir a intervenção da comunidade internaciona,l para que se repusesse a civilização da Convenção do Gramido, isto é, os interesses de Espanha, da Grã-Bretanha e da França. Prefiro continuar a ler o Espectro e a refundar a Carbonária, contra o governador que vendeu parte destas ilhas à companhia de deve e haver lá dos Países Baixos.  

Julgo que, nestes domínios de timorologia, a história demoliberal portuguesa pouco deixou de orgulhosamente recordável cá pelo sol nascente, desde o tal  governador que vendeu parte do estabelecimento, para cobertura do défice orçamental, ao abandono insolente e ignorante, concluído com a retirada para Ataúro, quando a tropa era um departamento de bombeiros incendiários, brincando a revoluções, guerra fria e "gritos do povo" sobre um nem mais um soldado para as colónias, para que morram apenas os coloniais, nestes jogos de guerra que aqui vamos propagar, para gozo de Pequim, Moscovo e Washington. 

Mesmo em demoliberalismos esotéricos, apenas se detecta uma loja Oceania, lá nos tempos da I República, um regime que aqui teve como principal governador Filomeno da Câmara, o dos fifis do pós-28 de Maio. Fica, contudo, de forma paradoxal, uma ideia de resistência contra os japoneses, com deportados anarquistas, tipo Carrascalão, e republicanos, tipo Cal Brandão ou tenente Pires, quando as tais sociedades secretas eram heróicas pela liberdade e correctas com a pátria, a quem cederam os simbolos da soberania no fim da guerra. 


Como leio num trabalho de um aluno: se perguntarmos à maioria dos timorenses dos distritos... que resistiu á invasão indonésia, porque hoje estamos independentes, as pessoas irão certamente atribuir o facto a Deus, aos ancestrais, aos nossos dirigentes e aos chefes tradicionais ou ainda à Natureza, como afirma a maioria dos guerrilheiros sobreviventes dos 24 anos de resistência nas matas de Timor-Leste. E isto é uma prova da existência de uma cultura, de uma comunidade regida por um direito consuetudinário que, ao longo dos séculos, sempre conduziu este povo até à sua libertação final do jugo colonial e tornar-se uma país independente.


E vai chegando a madrugada. A passarada começa a chilrear depois da tempestade. As pequenas osgas alegram-se no toke, toke. Os galos despertam todos os quintais. As rolas, aqui e além, compõem a harmonia. Um povo que quer ter direito a ser povo vai despertando para mais um dia de luta. Um povo que quer ser nação, unir-se em torno de uma comunhão pelas coisas que se amam, e pelas quais dezenas, centenas, milhares, centenas de meilhares deram a vida. Leio trabalho de um desses alunos: em Timor-Leste, particularmente nas áreas remotas, ainda reina o sincretismo, não sendo fácil às pessoas distinguirem os princípios de Direito dos da Religião, da moral e do costume. Enquanto em Dili as pessoas se viram cada vez  mais para o profano, procurando por todos os meios assimilar conhecimentos dos quais pensam poder dominar a natureza, nas montanhas as pessoas preocupam-se mais com as necessidades imediatas e, quando muito, as de médio prazo, passando os dias e, principalmente, as noites a admirar a natureza, a tentar perceber a saa concatenação com a alma dos ancestrais,e com uma lisan e uma lulik. A sua maior preocupação é o estabelecimento de uma harmonia espiritual, física e mesmo material com a Natureza, pois sabe e está convicto de que nós somos apnas uma ínfima parte do Cosmos.


A insustentável leveza do "to be or not to be, sendo que sonhamos ser

Agradeço aos muitos amigos que me enviaram o artigo, de hoje, do jornal "Público", da autoria de Pedro Rosa Mendes, dito "Timor Leste, a Ilha Insustentável". Sobre a matéria, as frases que, neste blogue, já escrevi assumem uma perspectiva diversa da expressa pelo correspondente da Lusa, homem de excelente palavra, óptima informação e com valores e crenças.  Sobretudo, porque não tenho, nem nunca tive, altas expectativas de uma ilha da utopia, nem as consequentes frustrações. Segundo, porque basta fazer comparativismo, e colocarmos Timor do Sol Nascente no contexto de outras Nações da respectiva Sociedade das Nações, paraconcluirmos que se trata de  uma realidade tão normal em  tal anormal quanto o seria a República dos Portugueses, se a relativizássemos no contexto de uma pequena Sociedade das Nações, restrita aos nórdicos escandinavos. Feliz, ou infelizmente, o meu estatuto de agente da cooperação obriga-me a ter que dizer antes e, para dentro, através de adequado relatório à consideração superior, mesmo que seja um tombo no caixotinho do lixo, o que, para fora, me apetecia comunicar e até polemizar. Mas, dentro de algumas semanas, poderei, em plena liberdade académica, se ela ainda houver, para mim, analisar, não tanto a questiúncula portuguesa, quanto a existência de uma das primeiras tentativas de criação de uma secção colonial do anticolonialismo da supra-estadualidade onusiana, com o seu "state building" de laboratório e o seu "nation building" de teses de mestrado e doutoramento.  Felizmente, não oriento nenhuma e se, por improvável acaso, for convidado para um júri desses, recordarei que continuo em regime de  "non grata" para com os missionários e missionárias de tal "way of life". Apesar de herético, prefiro a companhia e os conselhos do Padre João Felgueiras, que é homem de fé e maneja tão bem o lume da razão quanto o lume da profecia. E vou continuar a decifrar os conselhos do Professor José Mattoso.

24.11.08

Portugal inteiro há-de abrir os olhos um dia ... e então gritará comigo, a meu lado, a necessidade que Portugal tem de ser qualquer coisa de asseado!


Leio o comunicado de Cavaco-Presidente sobre o caso BPN, Dias Loureiro, Oliveira e Costa. Releio muitas notícias. Muitos despachos da Lusa.  Até fui à gaveta onde guardo o Manifesto Anti-Dantas de Almada Negreiros.  "Uma geração que consente deixar-se representar por um Dantas é uma geração que nunca o foi". Reparo como o julgamento da Casa Pia começa a ter o fim do respectivo princípio. E volta a apetecer citar Almada. Porque Dantas continua a mandar e, ainda por cima, nos mesmos sítios, apesar de ter havido a tal cena, e a tal ceia, a dos cardeais e das barregãs dos clérigos, todos em cuecas, com bolinhas da cor do burro quando foge. PorqueDantas foi monárquico no tempo da monarquia. Republicano no tempo da República. Salazarista no tempo de Salazar. E sempre fez adequados discursos contra os adesivos e os viracasacas...


"Uma geração com um Dantas a cavalo é um burro impotente!" Porque quanto é diferente a pulhítica em Portugal, entre os comentários de solidariedade de Marcelo, face aos presidentes, da sua república e do seu partido, e os comunicados de solidariedade que, de tantos, receberam os detidos, os conteúdos, os continentes, os teúdos e os manteúdos. Porque, se ser de direita é ter que elogiar Dantas, eu prefiro continuar a ser do movimento de Almada Negreiros.  "Uma geração com um Dantas ao leme é uma canoa em seco! "


Porque Almada, ao que julgo, nunca foi denunciado como o filósofo da traição. E também nunca foi presidente de um partido, para, depois, fazer estágio como ministro do adversário. Ou talleyrand de um regime para se tornar talleyrand no outro, um quarto de hora antes de eventual  novo discurso, sobre o inevitável fim do dito, pela necessária regeneração, que representa o novíssimo.  "O Dantas saberá gramática, saberá sintaxe, saberá medicina, saberá fazer ceias para cardeais, saberá tudo menos escrever que é a única coisa que ele faz!" Pelo menos, o Il Principe de Maquiavel, apenas teve tipografia no "post mortem".  "O Dantas usa ceroulas de malha!" 

Por outras palavras, apenas confirmo como, depois deste monumental falhanço da nossa esquerda governativa, nada melhor, para a dita, do que a procissão manifesta do descalabro moral da direita que convém à esquerda, da direita que a esquerda no poder, à custa do poder, tão beneditinamente, foi construindo, peça a peça, traição a traição, compra a compra, deserto a deserto, para que apenas ficassem pregações, sem microfone, nem tempo de antena. Por isso,  subscrevo o protesto de Carlos Abreu Amorim, ponto por ponto


"Não é preciso disfarçar-se para se ser salteador, basta escrever como o Dantas! Basta não ter escrúpulos nem morais, nem artísticos, nem humanos! Basta andar com as modas, com as políticas e com as opiniões! Basta usar o tal sorrisinho, basta ser muito delicado, e usar coco e olhos meigos! O Dantas é um autómato que deita para fora o que a gente já sabe o que vai sair... O Dantas é um soneto dele próprio! 



O Dantas em génio nem chega a pólvora seca e em talento é pim-pam-pum. Se o Dantas é português eu quero ser espanhol! O Dantas é a vergonha da intelectualidade portuguesa! O Dantas é a meta da decadência mental! E ainda há quem não core quando diz admirar o Dantas! E ainda há quem lhe estenda a mão! E quem lhe lave a roupa! E quem tenha dó do Dantas! E ainda há quem duvide que o Dantas não vale nada, e que não sabe nada, e que nem é inteligente, nem decente, nem zero! 


E fique sabendo o Dantas que se um dia houver justiça em Portugal todo o mundo saberá que o autor de Os Lusíadas é o Dantas que num rasgo memorável de modéstia só consentiu a glória do seu pseudónimo Camões. E fique sabendo o Dantas que se todos fossem como eu, haveria tais munições de manguitos que levariam dois séculos a gastar. Mas julgais que nisto se resume literatura portuguesa?  Não Mil vezes não! 


Portugal que com todos estes senhores conseguiu a classificação do país mais atrasado da Europa e de todo o Mundo! O país mais selvagem de todas as Áfricas!  O exílio dos degradados e dos indiferentes! A África reclusa dos europeus! O entulho das desvantagens e dos sobejos! Portugal inteiro há-de abrir os olhos um dia - se é que a sua cegueira não é incurável e então gritará comigo, a meu lado, a necessidade que Portugal tem de ser qualquer coisa de asseado!"

 

  

23.11.08

Apenas continuo a fingir que ainda posso desembarcar em Lifau e passar a Solor e Flores, sem fugir para o Ataúro


 (in memoriam de Rui Palma Carlos, que aqui veio ao fim de Portugal e nos deixou, em surrealismo de 1977 , este quadro dito Libertação)

Os meus alunos e os meus filhos não são do tempo dos restos do Império que nunca foi o Quinto, quando alguns ainda diziam que podíamos visitar um tempo em que o tempo tinha parado, porque, por cá,  ainda vivíamos antes de Bandung, mas também antes dos massacres do Ruanda, antes da guerra civil de Angola, antes de Mugabe, antes de Mandella. 

Era o tempo em que ainda era ministro Joaquim da Silva Cunha, que fumava cachimbo e despachava, com pormenores de lápis atrás da orelha, uma qualquer construção de barragens lá para os lados da Namíbia, sem ceder à pressão dos carcamanos e a outras, incluindo as da compra do poder. Até desdenhava daquela que lhe fazia a bicha dos intelectuários, desses que são intelectuais porque foram ministros, tal como foram ministros porque todos diziam que eram intelectuais, mas sem que a inteligência se tivesse casado com a honra, porque mesmo em glosas de um quarto de hora  antes de morrerem continuam a ser tão tratantes como sempre foram.


Era um tempo em que Lisboa vivia como se o Príncipe Regente ainda pudesse largar de barco do cais da Junqueira, com o Estado na bagagem de porão, sempre disponível para ocupar a colónia do Sacramento, para conquistar terreno na Amazónia, para poder contar com discursos feitos pelo Silvestre Pinheiro Ferreira, contra a oclocracia, ou com planos de reconstrução bancária do José da Silva Lisboa, para não ter que se dar razão a Weber, e ao protestantismo como a única ética possível para o dito capitalismo, o que vai do Oliveira e Costa ao Valle e Azevedo, onde nenhum deles é zeca nem diabo.

Alguns dos meus leitores que pensam ter horas certas, bem certinhas, quando lêem, com os olhos do respectivo a priori,  pré-captando (donde veio preceito) e cum-captando (donde veio conceito), o tempo e o lugar de emissão deste meu blogue, sem admitirem que, por aqui, tudo é nove horas mais cedo, também nunca hão-de compreender como, de vez em quando, assim vir ao mais cedo é talvez poder andar, no tempo, antes do tempo, coisa que, contudo, apenas é admissível para os que, não tendo queda para a literatura de justificação do revisionismo, julgam que o futuro é tempo que ainda vale a pena conjugar. 

Não é um acaso, mas apenas uma procura, a que, neste período, entre Obama eleito e o melão de Sócrates entreaberto, a que vou fazendo por esta ilha, pretensamente perdida. A tal que os administradores do império quiseram esquecer, a tal que os agentes da descolonização, do anti-rapidamente e em força, mais rapidamente se quiseram livrar dela, com o absurdo, entendível, de gonçalvistas promoverem partidos integracionistas face à Indonésia, enquanto nacionalistase super-direitistas iam traindo, cavando e dando às vilas diogo. Por isso me lembro da morte do Rui, lá no mês de Maio, para que não mais morra.

Porque, in medio, não estava a virtus, mas  moderadíssimos e malandríssimos oficiais, de carreira ainda mais ambiciosa, que, usando o "divide et impera", com riscos pouco calculados, prenhes de especialismos em estratégia, apenas não ponderaram a hipótese de duzentas mil vidas, decepadas por maus cálculos de "intelligence". 

Até nem faltaram sequer especialistas em importação de sandalosas iguarias, que não sabiam de poços de petróleo, nem entendiam que valeria a pena a soma de São Tomé com Timor, para a hipótese de um novo ministro das colónias que não tratasse apenas das contrapartidas dos casinos em omnipotência dita moral que é pior do que a outra. Pelo menos dava mais emprego do que o Macau do Stanley e outras afundações que são as únicas que julgam poder emitir adequadas certidões de patriotismo, porque, dos ostrácicos, nunca rezará a história, nem do futuro.

Portugal ainda era o erat e o tal erat era tão real que contá-lo, três décadas volvidas, pode parecer que soa a falsete. Mas o erat era mesmo em todo o lado, do mesmo modo, onde para fazermos a quarta classe sabíamos dos afluentes do Mondego e dos apeadeiros da Linha de Oeste, até que chegaram os que gritaram, e conseguiram, o nem mais um soldado para as colónias

Os que traduziam o estilo de Jane Fonda com o gnóstico de Mao Tse Tung, pintando de vermelho e amarelo as paredes da gare marítima de Alcântara, enquanto outros, mais telúricos e dados a santinhos de barro e missal, viam filmes do Eisenstein e punham Cunhal no lugar de Nossa Senhora de Fátima. Mas a maior parte de tais outros nem sabia para que lado seguir, entre os que partiam para Franças de valise de cartão e os soldadinhos do adeus até ao meu regresso com o angola é nossa tatuado por cima do amor de mãe.

E foi assim que correu Abril num fazer coisas em estampido, no que, noutros lugares, onde o tempo havia sido tempo do seu próprio tempo, havia demorado séculos de guerras civis, de guerras mundiais, de guerras coloniais. Eu, pelo menos, tive a vantagem de ser um desses meninos que passou noites em claro a transformar, em escrita, poemas por cumprir e manifestos políticos de uma revolução a haver, enquanto se ouvia Zeca Afonso e Chico Buarque, se liam coisas da arca do Pessoa, assim postas nas pretensas obras completas da edição brasileira, ou se descobria a Cecília, dos Açores e do Brasil. Para, bem lusotropical, me preparar para a guerra que um dia tinha que vir, com dois anos de comissão em terras de malária, mísseis e missangas. 

Por mim, que acabei por não vir à guerra, por não fugir para Paris, mas a ter que gerir o resultado de não ter havido guerras civis, guerras mundiais e guerras coloniais, apenas continuo a fingir que ainda posso desembarcar em Lifau e passar a Solor e Flores, sem fugir para o Ataúro.

A conspiração de Alves dos Reis, assim vista de mares a Sul de Larantuca


Sim! Já foram escritos todos os livros que explicam Ataúro 1975, invasão indonésia, Xanana, chefe da resistência, Ramos Horta, presidente, petróleo, Austrália. Mas ainda não sei suficiente lulic para deixar de ser malai, ainda não compreendi a imanência do crocodilo e de todos meus antepassados, ainda não sei que avô quer dizer mais do que auctoritas. Porque já se passaram muitos séculos desde o ano de sandalosos livros de deve e haver com a foz do Rio das Pérolas, coisa que é mais do que o papiar cristão ou que a busca do que está além da canela. Pelo menos, foram trezentos anos antes de 1812, depois de chins e dominicanos, pombais e jesuítas, e até filipes e 1640, tendo finalmente arribado, do Rio de Janeiro, um tal Vitorino Gusmão, que detectou a ilha dividida entre um partido a favor do rei de Motael e outro a favor do Padre Governador do Bispado, com a praça de S. Alteza Real abandonada. 

Na altura,  estava  o pessoal militar reduzido a doze Europeus, vindos como degredados de Goa, a quatro oficiais em iguais circunstâncias e somente um tenente coronel, um major, e um capitão, apenas os três que  tinham vindo servir voluntariamente. Embora houvesse cem soldados timores, mas sem soldo nenhum, enquanto o que recebiam Europeus e Goeses apenas dava para comerem durante quatro meses, sendo, portanto, forçados a comerciar, a ir aos diferentes reinos com fazendas muitos ordinárias, a troco de sândalo, cera e de escravos, num verdadeiro tráfico de mercancias...

Mas, de tanto ler e reler tudo o que trouxe, e muito do que por aqui descobri, para ler, reler e anotar, entre letra de forma, fotocópia e discos duros e flexíveis, confesso que já confundo Luna de Oliveira com o relato de Manuel Dias Loureiro a Judite de Sousa, e o ano de 1677, depois da ida a Porto Rico, com a conversa que o distinto conselheiro teve com António Marta. E já nem sei se tal aconteceu, antes ou depois, de um tal Oliveira e Costa andar como vice do Banco Europeu de não sei que tostões, ou depois de muitos perdões de dívidas a homens de Aveiro, a homens do Norte, a muitas contas de Mecenas e Mercenas, os quais, aliás, nada têm a ver com o aeroporto de Macau, nem com os campos de golfe do troca o prego. 

Porque os PSs e os PSDs nunca tiveram financiamento partidário sem ser previamente auditado, nem secretários gerais com jantaradas no restaurante da tia Rita, da tia Matilda, do Manel das Iscas, e do ver se te avias naquilo que Antero de Quental escreveu sobre a casta bancoburocrática do rotativismo, ou sobre aquilo que ensinavam ministros de salazar reconvertidos à tia Rita, à tia Matilda e ao Manel das Iscas, depois de muitos suores tropicalíssimos. Porque sempre há o tal que teve Soares na presidência, o que tem Cavaco na presidência, o que tem Sócrates com livros sobre os meninos de oiro apresentados pelo mesmo Loureiro, que até livros da Universidade de Coimbra chegou a patrocinar. 

O Vale e Azevedo que foi adjunto de um dos governos de Balsemão está agora em Londres. O Menezes, que voltou para Gaia, quer inverter a teoria camiliana de a queda do Anjo. O Ti Manel da Fava Rica vai escrever memórias com muita espuma, porque, como lhe faltavam balas, mandou Guerreiro fazê-las de pau, rijo como o ferro, e, juntamente algumas de calibre menor, de ferro batido, que trouxera de Macau, feito em obra. E Pedro de Mello certificou que tudo foi determinado para castigar as sublevações levantamentos que achou nas ditas ilhas,  e se vão continuando e sugerindo... 

Sei que, de Lisboa, vêm computadores Magalhães e carrinhas a electricidade, de quadrilátera estética oriental, que em Timor se vai construir um oleadutor, uma barragem de água destilada e que, da Indonésia, através do Lopes da Cruz, virá o justo desejo de fazer parte da CPLP, porque há blogues Fretilins e juízes Ivos, e juízes Rosas, e que há blogues anti-fretilins, e que também há relatórios de todas as cores, sobre a origem  dos partidos timorenses, sobre as teorias científicas wallersteinianas, sobre constitucionalismos mirandenses e canotilhenses, sobre memorialismos e politologias de reformas autárquicas, prebendadas, subsidiadas, viajadas, elogiadas,  e muitos outros que hão-de desembarcar, chegar, ver, receber e vencer. Por mim, que só sei que nada sei, vou continuando a ter que estudar, a ter que seguir o conselho da muita experiência, porque ainda há muito que quero fazer, sem nenhuma jantarada, almoçarada ou uiscada no hotel timor, com muita e muita gente que bebe do fino e dá parecer...

Estou aqui sentado no meu cantinho, diante das árvores do meu jardim, em mais uma noite em que dolorosamente me fico sem dormir, estou aqui, sentido, diante de mim, por dentro de mim,  confirmando, nas memórias das gentes, nos sinais das pedras, nas conversas de muitos, algo que se passou desde que o almirante chinês que podia ter feito a descoberta do caminho marítimo  da Índia para Lisboa, acabou por ter que regressar ao império do quadrado debaixo do céu, mui celeste, rodeado de sombras, porque a caravela era mais tecnologicamente atractiva que a grande nau, grande tormenta, de quem  se sentia ameaçado por gentes do Norte. Mas se o dono do casino da Coreia do Kim Il Sung já dita desditas, valia mais o Alves dos Reis macromonetário, precursor de Keynes, do sonhar é fácil. Porque chapéus há muitos, seus palermas, no tempo em que os vascos eram santanas.

21.11.08

Há medo, nunca vi tanto medo no meu país...



Quando tomo contacto com a anunciada detenção do homem do BPN, e medito no que o treinador Manuel José qualifica como o país dos suspensórios, prefiro olhar noutra dimensão, na que nos foi delineada por  Agostinho da Silva, por Natália Correia ou por Jorge de Sena. Porque há momentos em que outros dizem tudo aquilo que nebulosamente parecíamos alinhavar. Aconteceu-me, há pouco, com Fernando Dacosta, o tal continuador do triângulo de mestres que invoca, quando ele proclama:
Temos um imaginário público que necessita de ser alimentado. Os sonhos que tivemos no passado continuam no futuro. Daí dizer-se que temos saudade do futuro e não do passado. A minha geração foi altamente privilegiada, porque viveu um compacto de experiências que marcaram definitivamente a segunda metade do século XX. Compete-nos agora sensibilizar os mais jovens. De momento, não há regimes em ascensão. Estamos a assistir ao desbravar de uma era que vai fazendo movimentos para olhar o passado. Já os surrealistas diziam que "se queres caminhar para o futuro tens de olhar para o passado".

Porque
sem memória não há ideias, sem ideias não há pensamento, sem pensamento não há criatividade e sem criatividade não há futuro. Agora as pessoas, sobretudo as que nos governam, estão perversamente a apagar a memória e a vender o seu peixe. É por esta razão que os grandes criadores portugueses estão a dar grande importância à memória.

As coisas não se repetem. A Direita endeusou, a Esquerda simbolizou o Deus do bem e do mal, mas o político tem apenas de ser reduzido à sua condição humana. A maior parte dos nossos políticos, jovens, dinâmicos e pós-modernos ainda não repararam que estão todos no século XIX e não no XXI. Enquanto isto, o grosso das pessoas recusa pensar, sonhar e agarra-se à sua existência como se não houvesse vida paralela. Há medo, nunca vi tanto medo no meu país.

20.11.08

Eu, desde sempre processado como incorrecto, apoio Manuela Ferreira Leite, pessoa em quem nunca votarei, mesmo que Cristo volte a mergulhar no Tejo


Quem todos os dias olha o que resta da República dos Portugueses do outro lado do mundo e do outro lado da própria história, com um pouco de metapolítica e pouco lume da razão, compreende a pequenez em que nos vamos destroçando, face àquilo que escrevi no meu primeiro artigo de intervencionismo político, enquanto estudante universitário: somos um neofeudalismo que actua sobre uma anarquia ordenada. Infelizmente, aquilo que são as necessárias "sementes da revolta", título do meu segundo artigo no mesmo jornaleco semiclandestino e ciclostilado, que o director, muito matreiramente, passou a "sementes da revolução", perdem-se no processo selectivo dos compadres e das comadres das chamadas forças vivas.

O que se passou com o BCP e com o BPN, pequenas amostras do que foram os traseiros do cavaquistão, sobretudo a correria dos que consideraram que o importante não era ser  ministro, mas tê-lo sido, é directamente proporcional aos retiros soarentos para os restos coloniais de Macau e das fundações que, da sociedade de casino, de lá importámos e onde aconchegámos muitas finas flores do salazarismo, do marcelismo e do soarismo, a maior parte das quais não parece ser muito boa para cheirar.

Acresce que estas sucessões círculos concêntricos de neofeudalismos da casta bancoburocrática de sempre, assentes nos pactos de silêncio do rotativismo, espalha a estreiteza dos respectivos quintais a outros mundos, desde o jornalismo e comentarismo às placas giratórias das universidades e dos centros de carimbagem da intelectualidade, bem expressos nos abaixo-assinados com que apoiamos a lista de cartões de visita de um ou outro director que os supremos directores querem sanear. No fundo, no fundo, por todo o lado, das forças vivas, se espalha aquele odor a cadávares adiados com que impregnámos as ditas universidades privadas que, depois de falirem, parece que estão a lançar o processo de fragmentação junto das próprias universidades públicas.

É a toda esta sucessão de sinais de putrefacção que tenho chamado ditadura da incompetência, quando, como no crepúsculo da I República, regressam os bonzos, os endireitas e os canhotos. É por isso que, em resposta a um jornalista de Lisboa, sobre o caso MFL, recordei que estratégia, como aprendi no IDN, sempre foi  a arte de transformar as vulnerabilidades em potencialidades e, pelo contrário, de evitar que as potencialidades passem a vulnerabilidades. Apenas para concluir que, de tantos líderes anteriores, plenos de tacticismo, mas falhos de estratégia, o PSD, para mal da democracia, não  pode ter estratégia de comunicação, porque ainda anda à procura de estratégia de acção, que lhe permita superar o vazio de funcionalidade no actual sistema político.
 
Depois do período da gestão dos silêncios, que correspondeu a um momento de super-cavaquismo sem Cavaco, depressa se concluiu que o mesmo era pior emenda do que os sonetos de Menezes e de Santana, dado que as mensurabilidades opinativas reveladas pelas sondagens apontavam para um esvaziamento do partido em termos de apoios sociológicos. E as expectivas de muita comunicação social sobre MFL tinham a ver com a imagem que ela transmitiu de antiga ajudante de Cavaco, da ex-ministra tecnocrata que iria fazer de conselho de fiscalização de Teixeira dos Santos, vestida de Anti-Santana e de Anti-Menezes. Só que MFL tem genes de política desde os tempos do avô e do bisavô, bem como uma história de activismo e de solidariedade que lhe vem das próprias lutas estudantis, onde esteve sempre do lado da democracia. Só alguém mal-intencionado é que a pode colocar no lugar errado dos inimigos da democracia. Ou então, só alguém que não quer discutir o fundo da questão e prefere a pega de cernelha.

MFL ainda está na fase de personagem à procura de actor, ainda não estabeleceu devidamente o respectivo estilo como líder do principal partido da oposição. Primeiro, porque tem de se libertar do ausente-presente com quem sempre a comparam, Cavaco. Segundo, porque apanhou uma crise financeira internacional que a impediu de poder afivelar um discurso onde tem, indiscutivelmente,  mais autoridade do que o engenheiro da Beira Interior, formado na encerrada Independente. Terceiro, porque lançou pessoal político novo, como Paulo Rangel... Isto é, MFL ainda é um melão de que só puseram no prato as primeiras talhadas, um pouco massacradas pelos empurrões, até porque muitos ameaçavam que o PSD iria apresentar outra sobremesa, dita melancia, com uma coloração por fora e outra por dentro.

"Gaffe" é o Reagan ser apanhado a ameaçar a URSS em "off", o que não o impediu de ser o presidente do fim da guerra fria, mas também pode ser a do ministro Borrego a contar uma anedota sobre o alumínio e sair do governo para apresentar estudos para a confederação patronal sobre o novo aeroporto do Barrete Verde...  A ironia é coisa que não se adequa ao ritmo da "imagem, sondagem e sacanagem", a tríade que, segundo Manuel Alegre, marca a política à portuguesa...

Ao contrário do que parece, eu que costumo ser um crítico frontal de MFL, compreendi perfeitamente o que ela quis dizer e julgo que, se ela usar o tempo de antena a que tem direito, conseguirá comunicar devidamente a mensagem. Nem o avô dela, o ilustre José Eugénio Dias
Ferreira, o da greve académica de 1907, que, se quisesse, podia ser o chefe do 28 de Maio em vez de Salazar, deixaria de dizer que vivemos num período de degenerescência democrática, e que esse ambiente propicia a ilusão de uma suspensão da política. Mas também me lembro que um António Sérgio, em pleno crepúsculo da I República, chegou a lançar a ideia de uma espécie de ditadura à romana, onde, durante um período curto, se fariam as reformas que a partidocracia emperrava.

Lembro-me que Ramalho Eanes tentou coisa sucedânea com três governos presidenciais e que Mário Soares, por duas vezes, provocou a suspensão com um governo PS com ministros do CDS, por causa do FMI, e, depois, com um governo do Bloco Central, por causa da CEE. Mas o que tenho a certeza é que MFL não reeditou a proposta do Bloco Central, na linha do proposto no primeiro discurso de regresso de Paulo Pedroso. Pelo menos, eu percebi que ela estava a dizer que José Sócrates tinha entrado numa encruzilhada de conflito com as forças vivas e que, no
respectivo discurso, quase parecia que precisava de não ter partidos e oposição, sindicatos e patrões, para que o deixassem trabalhar, nem que seja como caixeiro viajante dos Sá Couto magalhanizados. Por outras palavras, compreendi a suprema ironia: MFL estava a fazer uma autocrítica e a denunciar a memória da maioria absoluta do cavaquistão, quando este mostrava o estilo que agora Sócrates parece assumir.

Em política o que parece é, e a ironia faz parte da arte literária e não do discurso eficaz a que está condenado o político. O caso mais próximo que conheço, no PSD, foi o de Marcelo Rebelo de Sousa comunicar que só iria disputar a presidência do partido quando Cristo voltasse à terra...

19.11.08

Por mais livros sobre pretéritos imperfeitos, mais confirmo que a poesia é mais verdadeira do que a história


Do ano de todos os fins dos princípios e de todos os princípios dos fins, entre a guerra dita fria, a revolução em Lisboa e os desembarques timorenses (um, nove, sete, cinco), já foram escritas todas as frases sobre atribuição e passa culpas, já foram preenchidas todas as fichas da chamada teoria da conspiração, e já foram contabilizados os duzentos mil mortos resultantes de erradas teorias de relações internacionais. Todos conhecemos os tristes meandros de uma ditadura, de uma revolução e de uma ocupação, permitidas e fomentadas pelas higiénicas teses do pretenso realismo político e do seu irmão-inimigo da utopia. Todos sabemos como se disfarçam os maquiavélicos defensores da liberdade, bem como os assassinos que lavam o sangue com os amanhãs que cantam. Até já vi chefes da PIDE teorizarem sobre o humanismo, só porque libertaram da morte e da prisão alguns que os seus lacaios para tal enfileiraram... Por isso, temos sempre saudades da Terra, mesmo quando estamos no Céu. 

Importa mais notar que tanto timorenses como portugueses, neste virar do milénio, procuraram expiar as suas culpas, provocadas por potências que nos fizeram agentes de guerras por procuração. Por isso, vou pesquisando a política da ilha do jacaré, notando como ela aqui é condenada a ter várias dimensões. Não apenas a da face visível do poder, como a que Geertz estudou na teatrocracia de Bali. Não apenas a da face invisível do mesmo poder, para uso de militares e adidos de segurança, sentados nos sofás do Hotel Timor, antes de partirem para os seus "briefings" nos "compounds" do ar condicionado, com metralhadora à ilharga, por causa das ajudas de custo. Mas, sobretudo, a de outras dimensões, mais fora do que é captável, como as que Ruy Cinatti nos ensinou. Como a que os bons padres e bons irmãos semeiam. Como aquela que está mais próxima da realidade. Como aquela que implica crescer para cima e crescer por dentro. Por isso, temos sempre saudades da Terra, mesmo quando estamos no Céu. 

Limpemo-nos da hiperinformação  com que nos tentam emprenhar de ouvida os muitos fazedores de literatura de justificação e de memorialismo. Desde os revolucionários frustrados, aos colonizadores que fugiram. Bem como dos agentes dos poderes estabelecidos que fomentam teses situacionistas ou oposicionistas. Aqui e aí, em qualquer lado. Como português à solta, de mal com os poderes estabelecidos por amor da liberdade, apenas me orgulho de as nossas presenças, nestas bandas, terem sido sempre extremamente ténues, na maior parte das vezes, como subdelegação de poderes vindos de Malaca, de Goa ou e de Macau. Mesmo o governador só aqui chegou no século XVIII, permitindo que os abstractos representantes do Estado fossem dominicanos, de vez em quando acirrados e importunados com a rivalidade dos jesuítas. Por mim, não quero balbuciar nomes como lemos pires, jónatas, barrento, mota, maggiolo, porque todos eles estavam no momento inoportuno no lugar errado e seria estúpido culpar almeida santos, soares ou costa gomes. Em timorense, todos estes nomes se escrevem com minúsculas. E só passaram a ter maiúsculas os que se superaram diante das circunstâncias de tragédia que os elevaram a heróis. Por isso, temos sempre saudades da Terra, mesmo quando estamos no Céu.  

Prefiro dizer que plenitude de uma racionalidade importada, de matriz estadual, conforme as normas do manual do cidadão, da organização política e administrativa da nação ou dos manuais de direito constitucional, revistos e anotados, apenas começou a estender as suas sombras nos finais do século XIX, com o governador Celestino e as suas campanhas ditas de soberania, quase iguais às de certos "consultings" jus-magistrais aqui aterrados. Aliás, os governadores republicanos são tão famosos que quase apenas se chamaram Filomeno da Câmara e, depois, Teófilo Duarte, valendo-nos a circunstância de um acaso procurado, a deportação, nos anos trinta, de anti-salazaristas, a qual, posteriormente, nos vai permitir alguns momentos de romântica luta de libertação, face à ocupação japonesa, depois da ocupação australiana, onde os mais dos mortos foram principalmente timores e não malaesPor isso, temos sempre saudades da Terra, mesmo quando estamos no Céu. 

Julgo que quanto mais dias por aqui passo, espreitando o corpo da terra desta ilha, ou desvelando a alma das gentes, mais chego à conclusão que só sei que nada sei e que, por isso mesmo, começo a saber alguma coisa.  Há por aqui uma natureza que, na alma destas gentes, é assumida como o objecto perfeito, entre a terra, o ar, a água e o fogo. Karma, panteísmo, Cristo, Maomé, ou Buda, todos são mais propícios para esse acesso ao multidimensional desta complexidade, para aquilo a que damos o nome de Deus. Daí que prefira a síntese de tal transcendente situado, a que chamam poesia e que nos permite manejar o mistério, o amor e algo do infinito. Por isso, temos sempre saudades da Terra, mesmo quando estamos no Céu. 

E depois de tantos livros de memórias e de história, de tantos ódios e de tantas estórias, regresso ao que deve-ser, e ao cancioneiro, com que Cinatti, que até era engenheiro, mas agrónomo, tentou aproximar a ilha do trovadorismo medieval donde nascemos, para se concluir que todas civilizações são mesmo poeticamente contemporâneas e não apenas na filosofia. Por isso, temos sempre saudades da Terra, mesmo quando estamos no Céu. 

Por mais livros que leia sobre os pretéritos imperfeitos, sobretudo os da descolonização e da ocupação, mais me refugio nas memórias do cancioneiro de Cinatti e assim confirmo como a poesia é mais verdadeira do que a história. Como o Ele, o amigo timorense, disse ao Eu: quando chegámos a Timor içámos os barcos para a montanha, virámos-lhes a quilha para o ar e servimo-nos deles como se fossem casas. O mito manteve-se mas o rito, o treino, perdeu-se, a memória esqueceu-se... Timor foi para nós o fim do mundo...

No cimo, erguemos a casa sagrada, tal como a Acrópole dos Gregos. E renovámos o culto da serpente, esquecido durante as longas viagens marítimas, quando as filhas da Terra nos foram oferecidas,  pelos primeiros habitantes de Timor em troca de uma paz desejada por vencedores e vencidos. A serpente ficou soberana da Terra, ainda que sob outros nomes, mas o seu poder diminuiu. Já não abarca o Céu, como outrora, senão quando a tromba d'água desaparece nas nuvens ou o arco -íris lhe oferece seguro percurso. Ouve-se, então, a serprente chorar, como nas fontes a água. O Sol, porém, consagrou-a, como esposa. Quando morremos, nem todos nós descemos às entranhas da Terra... Os que foram designados filhos do Sol ascendem ao Quarto Céu do mundo superior e ali ressuscitam iguais ao que eram em vida. Não te surpreendas se te disser que o Quarto Céu é muito parecido com a terra de onde vieram os nossos antepassados. Por isso, temos sempre saudades da Terra, mesmo quando estamos no Céu. A saudade é tão grande que não são poucos os timorenses vivos a receber a visita apaixonada das filhas do Céu....